DIREITO E CINEMA, O HOMEM QUE MATOU
O FACÍNORA E AS TEORIAS DE KANT, ALEXY, HARBERMAS E GÜNTHER, E DWORKIN, SOBRE O
DISCURSO E A LEGITIMAÇÃO DA NORMA JURÍDICA
Resumo
O presente artigo tem por escopo
analisar obra artística e cinematográfica, “O Homem que Matou o Facínora”,
dirigido por John Ford em 1962, pretendendo fazer uma co-relação entre arte e
direito.
A intenção é verificar se na obra
em foco existem elementos que são de interesse dos estudos
científico-jurídicos.
Em especial, pretende-se verificar se
existem elementos na película que guardem relação, seja positiva ou negativa,
com as teorias de Immanuel Kant e seu afirmativo categórico, Alexy e repartição
das normas entre princípios e regras, bem como a questão da colisão entre
normas, Habermas e Günther, em um mesmo tópico, sobre a teoria discursiva,
argumentação e discurso de justificação e, finalmente, Ronald Dworkin e a
integridade do direito e este enquanto uma construção.
Palavras
Chaves: afirmativo categórico, norma, princípio, regra,
discurso, argumentação, justificação, integridade, construção, narrativa.
Abstract
This article analyzes the artwork and
film, "
The Man Who Shot Liberty Valance," directed by John
Ford in 1962, proposing a co-relation between art and law.
The intention is to verify whether there are elements in the film work that are of interest to the scientific and legal studies.
The intention is to verify whether there are elements in the film work that are of interest to the scientific and legal studies.
In
particular, we intend to verify whether there are elements in the film which
relate, either positively or negatively with the theories of Immanuel Kant and
his so categories, Alexy and the breakdown of rules and principles as well as
the issue of collision of rules , Habermas and Günther, in the same topic, on
the theory of discourse, debate and speech justification and, finally, Ronald
Dworkin and the integrity of the law and its construction.
Keywords: categorical affirmative, norm, principle, rule, speech, argumentation, justification, integrity, construction, narrative.
1
- Introdução.
O
presente artigo tem por escopo analisar a obra artística e cinematográfica, “O
Homem que Matou o Facínora”, dirigido por John Ford em 1962, pretendendo fazer
uma co-relação entre arte e direito.
A
intenção é verificar se na obra em foco existem elementos que são de interesse
dos estudos científico-jurídicos.
Em
especial, pretende-se verificar se existem elementos na película que guardem
relação, seja positiva ou negativa, com as teorias de Immanuel Kant e seu
afirmativo categórico, Alexy e repartição das normas entre princípios e regras,
bem como a questão da colisão entre normas, Habermas e Günther, em um mesmo
tópico, sobre a teoria discursiva, argumentação e discurso de justificação e, finalmente,
Ronald Dworkin e a integridade do direito e este enquanto uma construção.
A
ordem estabelecida quanto aos autores citados, não se relaciona á uma ordem de
importância estabelecida pelo autor deste artigo, mas por ser considerada mais
didática e compreensível.
A
estrutura estabelecida para este artigo tentou dar-lhe uma forma que favorece a
sua compreensão, razão pela qual o inicia pelo filme, informando sua ficha
técnica, passando por uma síntese do enredo e breves dados biográficos do
diretor John Ford.
Em
outro tópico começa a análise do choque de valores estabelecidos entre os
personagens, para, logo a seguir, no tópico seqüente, passa-se a estabelecer
uma relação simbólica entre teorias e conceitos jurídicos e filosóficos e
alguns personagens.
Nos
demais tópicos, é estabelecida a relação do protagonista com os autores e suas
teorias, na ordem em que se encontram no título, sendo que, para facilitar, Günther
e Habermas são tratados em conjunto, embora não exista uma correlação absoluta
entre eles.
Finalmente,
na conclusão o artigo será encerrado, fazendo-se considerações gerais e finais.
2
- O Filme.
“O
homem que matou o facínora”, uma produção de 1962, é um filme dirigido por John
Ford, com roteiro de James Warner Bellah e Willis Goldbeck e tem no elenco John
Wayne, James Stewart, Vera Miles, Lee Marvin, Edmund O’brien, Andy Devine e Ken
Murray, contando, ainda, com uma participação discreta de Woody Stroody, ator
negro, bastante carismático que atuou nos anos cinqüenta e sessenta, com
freqüência em faroestes americanos e italianos.
O
título original é “The man who shot Liberty Valance?” (Quem é o homem que atirou
em Liberty Valance?)
A
fotografia é em preto e branco, realçando a esfera nostálgica e melancólica do
filme.
2.1 - O Enredo.
James
Stewart interpreta um senador americano (Ranson Stoddard) que, juntamente com a
sua esposa Hallie (Vera Miles), retorna, depois de muitos anos, à Shinbone,
pequena cidade do oeste americano, à qual retorna, inesperadamente, para
acompanhar o velório de um desconhecido Tom Doniphon (Wayne).
O
editor do jornal local, intrigado com o fato, procura o senador e termina por ouvir
deste um assombroso relato de fatos que aconteceram muitos anos antes.
O
Senador conta aos jornalistas que, recém formado em direito e muito jovem, veio
para o Oeste para praticar a advocacia, entretanto, próximo de Shinbone, a
diligência em que viajava é atacada por salteadores.
Ranson
é espancado pelo líder (Valance) interpretado por Lee Marvin, que lhe aconselha
a aprender a se defender com uma arma.
Ranson
é socorrido por Doniphon, que o leva para o restaurante onde sua namorada
Hallie trabalha. Doniphon, um homem aparentemente bondoso, mas com uma formação
rija, forte e conhecedor do manejo das armas o aconselha a se armar, tal como
Valance o fizera, para surpresa de Ranson, que descobre que ambos guardam a
mesma lógica valorativa.
Curiosamente,
o representante da lei é o fraco, medroso e bonachão, Link Appleyard, vivido
pelo engraçado Andy Devine.
Na
primeira parte da narração, Ranson se assemelha a alguém perplexo e
desajeitado, enquanto Doniphon se mostra senhor da situação, enfrentando e
subjugando Valance, por ser o único que o facínora teme.
Enquanto
isso Ranson passa a trabalhar no jornal local, cujo editor é Dutton Peabody
(O’brien) e institui uma escola em que alfabetiza crianças e adultos, além de
lhes dar lições de história, conhecimentos gerais e de cidadania.
A
partir do momento em que as pessoas começam a se esclarecer e adquirir maiores
conhecimentos, elas começam a pretender uma ordem social sem violência e
baseada na legalidade.
Em
face disso, o personagem interpretado por Stewart toma a dianteira em relação ao
personagem interpretado por Wayne, que o apóia, apesar de saber que não
pertence à realidade que se instala.
Valance,
por sua vez, vendo o risco do desaparecimento do seu mundo, intenta contra a
vida de Ranson, mas acaba morto.
A
morte de Valance, atribuída à Ranson, abre-lhe, definitivamente as portas para
a carreira política, terminando por se casar com Hallie, enquanto Doniphon
recolhe-se ao anonimato, só ressurgindo em face do seu falecimento, já velho,
desconhecido e sem qualquer lugar na história.
Eis a síntese do enredo.
2.2
– John Ford, o Diretor[1].
Sean
Aloysius O’Fearna, mas conhecido como John Ford, era filho de Cape Elizabeth
(Maine), nos Estados Unidos.
Era
o mais novo dos onze irmãos, e pertencia a um grupo social (irlandeses e
descendentes) que eram tratados como cidadãos de segunda classe frente aos
anglo-saxões.
Fez
muitas tarefas menores, mas ingressou no cinema em 1914, impulsionado por um
dos irmãos.
Foi
um ícone do estilo faroeste, podendo lhe ser atribuída a sua recriação,
alçando-o ao status de filme classe “A”, com a obra “No Tempo das Diligências”,
oportunidade em que John Wayne foi elevado à categoria de astro.
Entretanto,
Ford dirigiu filmes com outras temáticas de suma importância, nos quais ganhou
o Oscar e são eles: “O Delator” (1935), com Victor Mclaglen, “Vinhas da Ira”
(1940), com Henry Fonda, “Como Era Verde
Meu Vale” (1941), com Walter Pigeon e Maurenn O’Hara e “Depois do
Vendaval” (1952), com John Wayne, Maureen O’Hara, Victor Maclaglen e Ward Bond.
A
temática era irlandesa ou questões relativas a questões sociais ou políticas,
tais como em “Vinhas da Ira”.
Exceto
por Walter Pigeon, os demais atores citados são recorrentes na obra de Ford e
figuravam entre os seus atores preferidos, figurando alguns entre os seus
melhores amigos, dos quais era mentor, tal como Henry Fonda, John Wayne e Ward
Bond.
A
sua preferência por temas desta ordem, se liga a suas tendências políticas
progressistas. Inclusive, chegou a combater as ações do senador MacCarthy, e
defendeu pessoas que foram perseguidas, acusadas de comunistas e incluídas na
“lista negra” de Hollywood, em especial o diretor Joseph Manckiewicz.
John
Ford dirigiu mais de 150 filmes, recebeu um prêmio (Life Achievement Award) por
toda a sua carreira em 1973, ano em que morreu, infelizmente, enquanto passava
por sérias dificuldades econômicas.
Suas
obras, assim como em “O Homem Que Matou o Facínora”, retratam sua forma de ser.
3 - O Conflito de
valores.
Ranson,
quando chega a Shibone, acredita no sistema jurídico como meio de solução de
conflitos e garantia de equilíbrio da vida em comunidade, enquanto Liberty
Valance pretende a vida desregrada e violenta, impondo-se pela força. Doniphon,
por sua vez, acredita na justiça e é um bom homem, todavia, assim com Valance,
entende que só o emprego das armas e da violência, ou seja, a justiça privada e
retributiva podem garantir a paz e a harmonia almejada. Doniphon aposta no
individualismo e que cada um deve saber resolver os seus conflitos. De forma
incoerentemente benévola, todavia, protege as vítimas de Valance e seus
comparsas.
Existe
uma incipiente representação da ordem na cidade, configurada em Link, um xerife
indolente e medroso, o que reforça a posição predominante na região.
Por
outro lado o editor do jornal (O’brien), através da imprensa se torna um aliado
do jovem advogado, disseminando idéias que são aproveitadas por ele em suas
aulas.
É
compreensível que Ranson, embora amigo de Doniphon, se veja perplexo anti a sua
posição e o identifique, com pesar, com o facínora que o espancara.
No
primeiro choque cultural, Ranson é fragorosamente derrotado, mas, ao longo da
narração, ele e seu discurso, mediante uma ação fomentadora, ganham espaço
paulatinamente.
Entretanto, o seu crescimento encontra um obstáculo
em Valance, o que só termina com a sua morte.
Para
por termo ao status quo anterior e
definitivamente dar espaço a uma sociedade com uma nova ordem, faz-se
necessário um último ato de violência, ou seja, a morte de Valance.
Todavia,
a morte de Valance encerra, também, a época de Doniphon, que desaparece nas
sombras, enquanto Ranson vence sua primeira eleição até se tornar governador e
depois senador.
4 - A Simbologia de cada Personagem
neste Artigo.
Representativamente,
Ranson incorpora uma postura avançada em termos de normatização, em face do status quo vigente, pois busca validar
as suas crenças através do discurso, enquanto Doniphon representa uma posição
mais autoritária que se firma em uma moral aceita pela comunidade em questão,
mas que se impõe pela força. Trata-se, pois, de uma afirmação Hobesiana[2],
no sentido de que afirma que a lei advém da autoridade e não da verdade.
Valance,
por sua vez, é o contraponto que demonstra a fragilidade da posição de
Doniphon, comumente aceita no início da narrativa, visto que confirma a posição
da força autoritária, mas sem uma moral rígida, demonstrando que o mais forte prevalecerá
independentemente de conceitos válidos emergentes da comunidade, tais como
verdade e justiça, por exemplo, ou da aceitação ampla desta sociedade quanto ao
que se tem por aceitável enquanto valores por esta mesma comunidade.
Link,
preguiçoso, indolente, mas um simpático de bom coração corresponde à norma
formalmente correta[3],
mas sem legitimação por não conter um parâmetro que reflita os valores daquela
comunidade.
Peobady
é a consciência social e política, que começa a surgir, mas ainda fraco ganha
com a chegada de Ranson, que trás suporte racional e técnico para alavancar
suas idéias, até então toleradas, mas ignoradas pela comunidade, incluindo
Doniphon e Valance.
A
própria cidade de Shibone representa o micro-universo que abriga toda esta
questão de choques de valores que serão resolvidos pelo discurso introduzido
por Ranson.
5
- Kant e o Homem que Matou o Facínora.
Kant,
em “Crítica à Razão Pura”[4],
afirma que a única ação livre é a que se funda no senso de dever, ou seja, na
racionalidade pura. Para ele, é nela que se baseia a existência do direito, ou
seja, para a harmonia e conciliação das condutas livres.
Para
Kant, o imperativo categórico, isto é, aquilo que é reconhecido universalmente
como direito de todos, deve ser buscado e é nisso que reside à legitimação
desse direito.
Em
sua obra “Introdução ao Estudo do Direito, Doutrina do Direito”, Kant afirma
que a doutrina do direito é a soma daquelas leis para as quais é possível uma
legislação externa (Direito Positivo).
Kant
entendia que o direito é “a soma das condições sob as quais a escolha de alguém
pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade.”
Esta concepção posta em sua obra “Introdução ao Estudo do Direito”,
desenvolve-se, como é óbvio, a partir de sua teoria do imperativo categórico.
É
possível dizer, mais uma vez, que, para Kant, apenas o direito positivo é
direito e a norma aquela que se enquadre na universalidade da lei de liberdade.
Na
narrativa cinematográfica, percebemos que a postura de Doniphan, considerando
Shinbone como nosso universo, corresponde a uma postura de tal ordem, visto que
suas posições são tidas como reflexo de uma comunidade imatura, juridicamente
falando, e que encontra em um valentão de bom coração a expressão legiferante que
julga necessitar naquele momento.
Doniphan
é a expressão positivista do afirmativo categórico de Kant. Homem de poucas
palavras, não admite o argumento discursivo, mas somente a força da lei, ou,
por outro lado, a lei da força, ainda que eivado de sentimentos nobres.
Entretanto,
é sensível o bastante para entender o que Valance não conseguiu ou quis, ou
seja, que sua posição estava superada, embora não tivesse para eles lugar na
nova ordem.
O
universo hobessiano e sua transição para a visão kantiana encontram respaldo
nos personagens citados e nessa relação.
A
questão da legitimação do direito também foi questionada pelo filósofo
americano Henry David Thoreau, no clássico “A Desobediência Civil”.
Thoreau
era discípulo de Ralph Waldo Emerson, autor de a “Conduta para a Vida”, que lhe
serviu de base filosófica.
Waldo
Emerson fundou um movimento chamado transcendentalismo, que proclamava a
liberdade individual e a tolerância universal, sob a máxima “viver, deixar
viver e ajudar a viver”. Ele defendia idéias semelhantes às do discípulo.
Thoreau,
por sua vez, recusou-se a pagar tributo que financiasse a guerra contra o
México e que servisse à ideologia escravocrata.
Ele
afirmava que não devia obediência a normas criadas por quem não fora autorizado
pelo povo. Dizia ainda que o governo que menos governa é o melhor governo e
defendia também a desobediência civil como forma de resistência.
Thoreau teria admiradores como Leon
Tolstoy, Gandhi e Martin Luther King.
Ao
longo do século XX, vários autores vêm se preocupando com a legitimidade das
normas e decisões.
Este
questionamento surge ao longo da narrativa através de Peabody, o editor do
jornal, que embora progressista e questionador da ordem vigente, é
indisciplinado e beberrão, razão pela qual era visto com simpatia e certa
jocosidade, assim como Thoreau.
Todavia,
esta postura em relação à Peabody muda quando este se alia a Ranson, posto que
seu discurso torna-se aceitável e palatável em face da comunidade, dada a
racionalidade argumentativa do seu novo aliado, razão pela qual ele e seu
jornal passam a ser vistos como uma ameaça para Valance e os seus comparsas.
6
- A Postura Positivista no Filme.
O
positivismo se estabelece entre Doniphon e Ranson, concentrando-se claramente
no primeiro, visto que é ele quem adota uma postura determinista e protetora
(paternal) em face dos membros da comunidade.
O
positivismo, mais do que a simples questão da norma editada, trás a relação
entre paternidade e a lei, imposição de limites e permissões. O seu elemento
deôntico, fator fundamental da norma jurídica, se expressa através do pai.
O
livro “Do Direito ao Pai” [5]
deixa clara a importância da função paterna na transmissão da premissa de
obediência à lei. Para a autora,
professora de psicologia da Newton de Paiva, não é sem razão que Kelsen chama a
autoridade paterna para exemplificar a autoridade imaginária.
Na
verdade o positivismo muito mais se liga ao determinismo da norma escrita, do
que à sua própria existência, já que os pós-positivistas não rejeitam ou negam
a validade da norma escrita, mas tão somente o determinismo que os positivistas
entendem que ela deva ter.
Esse
positivismo determinista é encarnado por Doniphan, mas é, paulatinamente,
substituído por Ranson, que chama, de certa forma, todos os envolvidos para
participar das decisões importantes para o grupo.
Portanto,
a autoridade determinista do Estado é substituída, aos poucos por outra,
fundamentada na participação de todos
nos elementos decisórios que os envolvem.
7 - A Postura
Discursiva representada por Ranson: Alexy, Günther e Habermas, e Dworkin.
Ranson
representa as teorias modernas quanto à legitimação e criação da norma, o que
será analisado nos subitens que se seguem.
7.1
- Ranson e Alexy.
Para
Alexy, na obra “Teoria dos Direitos Fundamentais”, normas são princípios e
regras. Segundo ele, princípios são
normas de otimização, ou seja, prima
facie, ou mandados de otimização, enquanto regras são normas cujo
mandamento expressa uma determinação, por isso serão cumpridas ou não.
A
colisão entre normas implicará na invalidação de uma delas, exceto se
introduzida em uma delas uma cláusula de exceção, caso em que deixara de ser
determinante ou absoluta, no seu aspecto deôntico, para se tornar, também, um
mandamento prima facie.
Segundo
Alexy, a colisão entre princípios em face do caso concreto, exige a aplicação
de um em detrimento do outro, sem que isso implique em sua invalidação.
Para
ele, nesse caso deve se aplicar a regra da ponderação, para que possa ser
determinado qual princípio, em face do caso concreto, deve ser aplicado.
Entretanto, será que tal questão pode
ser identificada durante a película ou haveria um conflito entre a teoria de a
Alexy e a obra cinematográfica de John Ford?
Em
primeiro lugar, uma ordem, via de regra, não é substituída por outra de
imediato, havendo, em geral, um período de transição.
Houve
um momento em que Ranson e Doniphon eram vistos como dois pilares normativos
válidos e, conquanto já se iniciava a aceitação da ordem representada por Ranson, em dado momento em que tais
princípios foram colidentes, uma foi aplicada sem invalidação da outra.
O
momento marcante em que isso se deu foi quando Valance é abatido a tiros durante
o duelo com Ranson. O advogado se propôs ao duelo por entender que, naquele
momento, ainda que postulasse uma ordem diversa, diante do caso concreto, era o
que devia ser feito, tanto assim que possuía uma arma.
Entretanto,
desaparecida a questão que permitia a aplicação daquele princípio, ele não foi
mais aplicado por Ranson, que prosseguiu nos termos iniciais de seu discurso.
É
aí que entra outro aspecto da teoria de Alexy. Alguns dizem que, em alguns
casos, a colisão entre princípios vai levar a invalidação de um deles de forma
absoluta, o que tornaria sem sentido a distinção existente entre norma e
princípio posta naquela obra.
Entretanto,
Alexy, esclarece que quando um princípio não pode mais ser aplicado, é porque
não foi recepcionado pelo sistema jurídico vigente, não havendo que se falar em
colisão de norma válida e de uma norma invalida.
Assim,
exemplifica muito bem o autor ao mencionar a invalidação do princípio da
superioridade racial, acolhida durante o Estado Nazista e que não foi
recepcionado pelo sistema jurídico que lhe seguiu, não havendo que se falar em
colisão entre aquele princípio e o princípio da igualdade.
Notadamente,
o que acontece em casos como tal é a invalidação daquele princípio por sua
absoluta incompatibilidade com o sistema jurídico em vigor.
Da
mesma forma, a abolição da justiça privada, de forma absoluta, como se vê,
posteriormente, no desfecho do filme, se dá, exatamente pela invalidação do
princípio da justiça privada, em face do sistema que passou a vigorar á partir
de então, com o fim da transição de um sistema para o outro, tanto assim que,
Doniphan, no fim da vida, não portava, ele também, qualquer tipo de armas e,
segundo um dos personagens, “há muitos anos”.
Portanto,
algumas questões que atormentam os jusfilósofos há muito tempo, foram
acolhidas, intuitivamente, por John Ford, um artista da sétima arte, mas sem
formação jurídica ou filosófica.
7.2
– Ranson, Gunther e Habemas.
Conquanto
Alexy tenha uma obra intitulada “Teoria da Argumentação Jurídica”, optamos,
nesse trabalho, trabalhar com a obra de Klaus Gunther “Teoria da Argumentação,
no Direito e Na Moral”.
Ranson,
no início do filme, parece tão incompatibilizado com a ordem social de Shinbone
que, apesar de sua cultura, só está apto a lavar pratos e servir as mesas,
função que naquele local é exclusivamente feminina.
Entretanto,
pouco a pouco ele consegue, através de uma prática discursiva constante, ele
passa a interagir com os habitantes, começa um processo de alfabetização dos
negros, mulheres, pobres, mestiços, mexicanos e pequenos agricultores.
A
conduta de Ranson, em primeiro lugar, reduz o abismo cultural existente e
introduz a comunicação e participação de grupos sociais e étnicos que não eram
ouvidos até então.
Portanto,
é a partir daqui que a teoria de Günther, pode ser identificada com a conduta
de Ranson.
Foi
Gunther quem desenvolveu a teoria quanto á diferenciação entre o discurso de
fundamentação e o discurso de aplicação e não Habermas, como muitos acreditam,
embora exista uma relação entre eles, convém dizer que Habermas acolheu a
teoria de Klaus Günther em sua obra “Direito e Democracia”, e não o contrário.
Para
ele, a fundamentação está ligada á validade da norma. O processo de
justificação da norma se apóia no seu critério de validade.
Habermas
(Direito e Democracia), por sua vez, entende que a norma é legitimada quando
resulta de uma comunicação racional, que ela é resultado do consenso entre
todos, ou seja, aqueles a quem ela se direciona.
Para
Habermas, a norma é legitima quando resulta do consenso daqueles a quem ela é
destinada, razão pela qual só é possível na democracia, quando os direitos
fundamentais são garantidos.
É
uma visão democrática e inclusiva do direito, desde a sua criação, até a sua
aplicação nos casos concretos, como será mencionado adiante com mais detalhe.
Habermas fundamenta sua teoria com base
no agir comunicativo. Para ele os processos de ação comunicativa têm funções
recíprocas de construção da sociedade, cultura e personalidade pelas interações
e mediações da linguagem.
Esta teoria tem muito sentido se
compreendermos que, Lacan, segundo Quinet na sua obra “A descoberta dão
Inconsciente, do Desejo ao Sintoma”[6]
afirma que a mente humana é estruturada pela linguagem. O homem para ele é
linguagem posto que é um ser cultural. É a linguagem que o humaniza e o afasta,
definitivamente, da natureza, definindo-o e o estruturando, razão pela qual é
lógico que todo o progresso científico e filosófico passe pela linguagem, por
um discurso racional e estruturado.
Para
Lacan, é na linguagem que habitamos e por ela somos habitados. Segundo ele o
inconsciente de Lacan é estruturado de acordo com a linguagem que habitamos e
que habita em nós.
A
linguagem se origina no Édipo, nome do pai, primeiro significante.
Para
Lacan, a linguagem é individual, mas a fala ou o discurso implica no
reconhecimento do outro.
Eis
porque, qualquer teoria séria do direito deve passar pela linguagem e pela
prática discursiva. Daí a importância da teoria discursiva de Habermas e da
teoria dos discursos de justificação e aplicação desenvolvidos por Günther.
Para
Günther, o discurso de aplicação está ligado à gênese da norma, posto que a
criação da norma, como dito, deve estar apoiada no consenso resultante do
discurso racional.
A
norma jurídica deve ser gerada pelos seus destinatários, ou seja, os membros da
comunidade que ela irá regular. Somente aí pode haver legitimação, visto que se
justifica nas diretrizes e verdades daquela comunidade.
Pois
bem, é isso que Ranson faz ao introduzir a participação de toda a comunidade
nas decisões de formulação normativa daquela comunidade. É partir daí que a
comunidade de Shinbone faz valer a inclusão de normas que garantiam o direito
dos pequenos agricultores, bem como a sua independência política e
administrativa, contra os interesses dos grandes latifundiários.
Basta
dizer que Doniphon embora ligado ao seu ajudante negro (interpretação de Woody
Strode), cujo nome é Pompey e que ficou ao seu lado até o fim da vida, sempre
mantém com este uma relação de cordial superioridade, que se torna mais
determinante em momentos críticos, quando, por exemplo, o retira da sala de
aula em que aprende noções de história e cidadania, enquanto está sendo
alfabetizado.
Lado
outro, Ranson mantém com Pompey um relacionamento que é mais vantajoso para ambos,
pois dialoga com ele, houve o que tem a dizer, respeitando, inclusive, suas
limitações na sala de aula.
Eis
a essência dos relacionamentos de Ranson, ele é inteiramente dialógico,
comunicativo, discursivo, estabelecendo-se sobre o dizer e ouvir, oferecendo
benefícios á todos os participantes da relação.
Um
exemplo claro disso está na sua relação com Hallie (Miles), posto que este propõe
ensinar-lhe a ler e ela se torna a sua companheira por toda a vida. Da mesma
forma, ele propõe a dialogar e educar os cidadãos de Shinbone e estes o elegem.
Alguns
diriam que a conduta de Ranson ao travar um diálogo racional com os excluídos
de Shinbone só ocorreu porque ele, um advogado esclarecido, era também um
excluído, visto que era pobre e, segundo a ordem social vigente no início do
filme, totalmente inapto para ocupar uma posição de destaque na sociedade, além
de ser um forasteiro, tanto assim, que de início, só conseguiu lavar pratos e
servir mesas, sem muito sucesso, inclusive, funções menosprezadas por aquela
comunidade.
Entretanto,
tal afirmativa seria inócua, para não dizer irrelevante, visto que o que
importa é que ele optou por uma prática discursiva, não violenta, igualitária e
inclusiva e que este posicionamento foi bem sucedido.
É
Stoddard quem introduz o diálogo, o discurso racional, a igualdade e, portanto,
a democracia em Shinbone, correspondendo, neste aspecto ao posicionamento de
Klaus Günther e Jurgen Habermas quanto à validação da norma jurídica em uma
democracia, conferindo estabilidade às garantias fundamentais que devem existir
em favor de todos os grupos que compõem à sociedade, sejam eles de natureza
étnica, social, religiosa ou cultural.
7.3
– Ranson e Dworkin.
Quando
Ranson Stoddard chega em Shinbone, já existe uma comunidade instalada, o que
faz supor um passado, uma história, um desenvolvimento que não nos é dado
saber, mas que podemos pressupor, pois ali já existem edificações, habitantes,
relacionamentos, atividades de ordem econômica, etc.
Portanto,
havia uma sociedade em desenvolvimento, inclusive no sentido sócio-jurídico.
Nesse
contexto, Stoddard se insere e começa a dar a sua contribuição para essa
construção.
Antes
dele havia uma ordem social e normativa que se fez representar nas telas por
Tom Doniphon, interpretado por John Whayne, um dos atores preferidos de Ford e
de quem foi, praticamente, mentor.
Não
existe confronto ou oposição entre Ranson e Tom, embora haja divergência, mas o
fato é que eles não se excluem antes se complementam no sentido de que cada um
responde pela sua função construtiva até onde deve ser contribuindo para a
narrativa geral.
Ranson
é o protagonista, mas Doniphon não é o seu antagonista, antes, co-protagoniza
junto com o primeiro, cada um dando a sua contribuição para a narrativa.
Doniphon
representa o pai (Estado), protetor e repressor (fatores deônticos), que impõem
a sua lei em face de uma autoridade que se justifica em si mesmo.
Ranson,
por sua vez, representa o pai (Estado), que sem rejeitar os fatores deônticos,
se abre para o diálogo, e firma a legitimidade de sua autoridade sobre a
participação daqueles a quem ela se dirige.
Para
Ranson, isto fica claro durante todo o desenrolar da trama, a lei deve ser
aplicada, mas não uma lei que se baseia na força, mas aquela que se firma na
concórdia resultante da participação dialógica e discursiva.
É
nesse cenário que a teoria de Ronald Dworkin, na sua obra “O Império do
Direito”, aponta diretrizes[7],
na sua discussão sobre o papel dos juízes, sua atividade construtiva:
(...)
o presente livro expõe, de corpo inteiro, uma resposta que venho desenvolvendo
aos poucos, sem muita continuidade, ao longo de anos: a de que o raciocínio
jurídico é um exercício de interpretação construtiva, de que nosso direito
constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas, e de
que ele é a narrativa do que faz dessas práticas as melhores possíveis.
(Dworkin, 2007).
Para
Dworkin, o direito é um exercício construtivo, que é uma narrativa, um
desenrolar que vai se desenvolvendo, á partir da contribuição de cada um dos
seus agentes.
A
própria natureza do filme, uma narração dentro de uma narração, deixa claro que
as mudanças ocorridas se deram pela construção metódica e cotidiana de todos os
personagens que se dedicaram a contribuir para o desenvolvimento da história do
sistema jurídico daquela sociedade.
8
- Conclusão.
A arte muito contribui para as ciências
que, em regra, ingratas não o reconhecem.
Todavia,
não restam duvidas de que a ciência jurídica muito tem a ganhar em sua
aproximação com a arte, sobretudo as artes cênicas por sua íntima relação com a
literatura, esta última, certamente a que mais contribui para as ciências
jurídicas.
Propositalmente,
foi escolhido um filme que, a priori, não guarda relação com as ciências
jurídicas, posto que não se desenvolve em um cenário de tribunais ou como
personagens advogados, promotores e juízes.
A
intenção é mostrar que é inerente ao artista a captação de anseios sociais que
serão canalizadas, muitas vezes de forma imperceptível à primeira vista, para o
objeto de sua sensibilidade, ou seja, a sua obra.
Ford,
em um filme de faroeste conseguiu inserir conflitos sociais e jurídicos que,
muitas vezes, passam despercebidos ao telespectador menos atento, mas que vem
se configurando em questões que são frutos da indagação de muitos dos notáveis
jusfilósfos de vários anos, eles também, fazendo a sua narrativa e trabalhando
na construção e integralidade do direito.
Referências
Bibliográficas.
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Trad.Claudio Molz. São Paulo: Landy Editora, 2004.
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Moderna, 2009.
[1] Retirado da biografia que consta do livro-Dvd
“Rastros de Ódio” da coleção Folha Clássicos do Cinema.
[2]
HOBBES, Thomas. Leviatã ou a Matéria Forma e Poder de um Estado Eclesiástico.
Editora Ícone, 2000.
[3]
Link é um xerife eleito, mas que, no caso do filme, não corresponde aos anseios
da comunidade.
[4]
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Editora Cultura, 1991.
[5] BARROS, Fernanda Otoni. Do Direito ao Pai.
Belo Horizonte. Del Rey, 2001.
[6]
QUINET, Antonio. A descoberta do Inconsciente, do desejo ao sintoma. 3ª Edição.
Rio de Janeiro. Zahar, 2008.
[7]
Dworkin, Ronald (2007)
² Encarnação, João Bosco (1999)
Apesar do pífio conhecimento em Direito, pude aprender um pouco sobre várias vertentes desta disciplina, nesta abordagem sobre um filme de faroeste e a fundamentação jurídica. É claro que vou ler outras vezes o artigo, pela dificuldade que tenho em aprender sobre os conteúdos desta natureza, porém endosso o caminho didático de enxergar na arte cinematográfica o aprendizado e aplicabilidade do saber jurídico.
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