sábado, 19 de janeiro de 2013

Direito e Cinema, O Homem que Matou o Facínora


DIREITO E CINEMA, O HOMEM QUE MATOU O FACÍNORA E AS TEORIAS DE KANT, ALEXY, HARBERMAS E GÜNTHER, E DWORKIN, SOBRE O DISCURSO E A LEGITIMAÇÃO DA NORMA JURÍDICA

Resumo
O presente artigo tem por escopo analisar obra artística e cinematográfica, “O Homem que Matou o Facínora”, dirigido por John Ford em 1962, pretendendo fazer uma co-relação entre arte e direito.
A intenção é verificar se na obra em foco existem elementos que são de interesse dos estudos científico-jurídicos.
Em especial, pretende-se verificar se existem elementos na película que guardem relação, seja positiva ou negativa, com as teorias de Immanuel Kant e seu afirmativo categórico, Alexy e repartição das normas entre princípios e regras, bem como a questão da colisão entre normas, Habermas e Günther, em um mesmo tópico, sobre a teoria discursiva, argumentação e discurso de justificação e, finalmente, Ronald Dworkin e a integridade do direito e este enquanto uma construção.

Palavras Chaves: afirmativo categórico, norma, princípio, regra, discurso, argumentação, justificação, integridade, construção, narrativa.

Abstract
This article analyzes the artwork and film, " The Man Who Shot Liberty Valance," directed by John Ford in 1962, proposing a co-relation between art and law.
The intention is to verify whether there are elements in the film work that are of interest to the scientific and legal studies.
In particular, we intend to verify whether there are elements in the film which relate, either positively or negatively with the theories of Immanuel Kant and his so categories, Alexy and the breakdown of rules and principles as well as the issue of collision of rules , Habermas and Günther, in the same topic, on the theory of discourse, debate and speech justification and, finally, Ronald Dworkin and the integrity of the law and its construction.

Keywords:  categorical affirmative, norm, principle, rule, speech, argumentation, justification, integrity, construction, narrative.

  1 - Introdução.
O presente artigo tem por escopo analisar a obra artística e cinematográfica, “O Homem que Matou o Facínora”, dirigido por John Ford em 1962, pretendendo fazer uma co-relação entre arte e direito.
A intenção é verificar se na obra em foco existem elementos que são de interesse dos estudos científico-jurídicos.
Em especial, pretende-se verificar se existem elementos na película que guardem relação, seja positiva ou negativa, com as teorias de Immanuel Kant e seu afirmativo categórico, Alexy e repartição das normas entre princípios e regras, bem como a questão da colisão entre normas, Habermas e Günther, em um mesmo tópico, sobre a teoria discursiva, argumentação e discurso de justificação e, finalmente, Ronald Dworkin e a integridade do direito e este enquanto uma construção.
A ordem estabelecida quanto aos autores citados, não se relaciona á uma ordem de importância estabelecida pelo autor deste artigo, mas por ser considerada mais didática e compreensível.
A estrutura estabelecida para este artigo tentou dar-lhe uma forma que favorece a sua compreensão, razão pela qual o inicia pelo filme, informando sua ficha técnica, passando por uma síntese do enredo e breves dados biográficos do diretor John Ford.
Em outro tópico começa a análise do choque de valores estabelecidos entre os personagens, para, logo a seguir, no tópico seqüente, passa-se a estabelecer uma relação simbólica entre teorias e conceitos jurídicos e filosóficos e alguns personagens.
Nos demais tópicos, é estabelecida a relação do protagonista com os autores e suas teorias, na ordem em que se encontram no título, sendo que, para facilitar, Günther e Habermas são tratados em conjunto, embora não exista uma correlação absoluta entre eles.
Finalmente, na conclusão o artigo será encerrado, fazendo-se considerações gerais e finais.


2 - O Filme.
“O homem que matou o facínora”, uma produção de 1962, é um filme dirigido por John Ford, com roteiro de James Warner Bellah e Willis Goldbeck e tem no elenco John Wayne, James Stewart, Vera Miles, Lee Marvin, Edmund O’brien, Andy Devine e Ken Murray, contando, ainda, com uma participação discreta de Woody Stroody, ator negro, bastante carismático que atuou nos anos cinqüenta e sessenta, com freqüência em faroestes americanos e italianos.
O título original é “The man who shot Liberty Valance?” (Quem é o homem que atirou em Liberty Valance?)
A fotografia é em preto e branco, realçando a esfera nostálgica e melancólica do filme.
    
2.1 - O Enredo.
James Stewart interpreta um senador americano (Ranson Stoddard) que, juntamente com a sua esposa Hallie (Vera Miles), retorna, depois de muitos anos, à Shinbone, pequena cidade do oeste americano, à qual retorna, inesperadamente, para acompanhar o velório de um desconhecido Tom Doniphon (Wayne).
O editor do jornal local, intrigado com o fato, procura o senador e termina por ouvir deste um assombroso relato de fatos que aconteceram muitos anos antes.
O Senador conta aos jornalistas que, recém formado em direito e muito jovem, veio para o Oeste para praticar a advocacia, entretanto, próximo de Shinbone, a diligência em que viajava é atacada por salteadores.
Ranson é espancado pelo líder (Valance) interpretado por Lee Marvin, que lhe aconselha a aprender a se defender com uma arma.
Ranson é socorrido por Doniphon, que o leva para o restaurante onde sua namorada Hallie trabalha. Doniphon, um homem aparentemente bondoso, mas com uma formação rija, forte e conhecedor do manejo das armas o aconselha a se armar, tal como Valance o fizera, para surpresa de Ranson, que descobre que ambos guardam a mesma lógica valorativa.
Curiosamente, o representante da lei é o fraco, medroso e bonachão, Link Appleyard, vivido pelo engraçado Andy Devine.
Na primeira parte da narração, Ranson se assemelha a alguém perplexo e desajeitado, enquanto Doniphon se mostra senhor da situação, enfrentando e subjugando Valance, por ser o único que o facínora teme.
Enquanto isso Ranson passa a trabalhar no jornal local, cujo editor é Dutton Peabody (O’brien) e institui uma escola em que alfabetiza crianças e adultos, além de lhes dar lições de história, conhecimentos gerais e de cidadania.
A partir do momento em que as pessoas começam a se esclarecer e adquirir maiores conhecimentos, elas começam a pretender uma ordem social sem violência e baseada na legalidade.
Em face disso, o personagem interpretado por Stewart toma a dianteira em relação ao personagem interpretado por Wayne, que o apóia, apesar de saber que não pertence à realidade que se instala.
Valance, por sua vez, vendo o risco do desaparecimento do seu mundo, intenta contra a vida de Ranson, mas acaba morto.
A morte de Valance, atribuída à Ranson, abre-lhe, definitivamente as portas para a carreira política, terminando por se casar com Hallie, enquanto Doniphon recolhe-se ao anonimato, só ressurgindo em face do seu falecimento, já velho, desconhecido e sem qualquer lugar na história.
Eis a síntese do enredo.

2.2 – John Ford, o Diretor[1].
Sean Aloysius O’Fearna, mas conhecido como John Ford, era filho de Cape Elizabeth (Maine), nos Estados Unidos.
Era o mais novo dos onze irmãos, e pertencia a um grupo social (irlandeses e descendentes) que eram tratados como cidadãos de segunda classe frente aos anglo-saxões.
Fez muitas tarefas menores, mas ingressou no cinema em 1914, impulsionado por um dos irmãos.
Foi um ícone do estilo faroeste, podendo lhe ser atribuída a sua recriação, alçando-o ao status de filme classe “A”, com a obra “No Tempo das Diligências”, oportunidade em que John Wayne foi elevado à categoria de astro.
Entretanto, Ford dirigiu filmes com outras temáticas de suma importância, nos quais ganhou o Oscar e são eles: “O Delator” (1935), com Victor Mclaglen, “Vinhas da Ira” (1940), com Henry Fonda, “Como Era Verde  Meu Vale” (1941), com Walter Pigeon e Maurenn O’Hara e “Depois do Vendaval” (1952), com John Wayne, Maureen O’Hara, Victor Maclaglen e Ward Bond.
A temática era irlandesa ou questões relativas a questões sociais ou políticas, tais como em “Vinhas da Ira”.
Exceto por Walter Pigeon, os demais atores citados são recorrentes na obra de Ford e figuravam entre os seus atores preferidos, figurando alguns entre os seus melhores amigos, dos quais era mentor, tal como Henry Fonda, John Wayne e Ward Bond.
A sua preferência por temas desta ordem, se liga a suas tendências políticas progressistas. Inclusive, chegou a combater as ações do senador MacCarthy, e defendeu pessoas que foram perseguidas, acusadas de comunistas e incluídas na “lista negra” de Hollywood, em especial o diretor Joseph Manckiewicz.
John Ford dirigiu mais de 150 filmes, recebeu um prêmio (Life Achievement Award) por toda a sua carreira em 1973, ano em que morreu, infelizmente, enquanto passava por sérias dificuldades econômicas.
Suas obras, assim como em “O Homem Que Matou o Facínora”, retratam sua forma de ser.

3 - O Conflito de valores.
Ranson, quando chega a Shibone, acredita no sistema jurídico como meio de solução de conflitos e garantia de equilíbrio da vida em comunidade, enquanto Liberty Valance pretende a vida desregrada e violenta, impondo-se pela força. Doniphon, por sua vez, acredita na justiça e é um bom homem, todavia, assim com Valance, entende que só o emprego das armas e da violência, ou seja, a justiça privada e retributiva podem garantir a paz e a harmonia almejada. Doniphon aposta no individualismo e que cada um deve saber resolver os seus conflitos. De forma incoerentemente benévola, todavia, protege as vítimas de Valance e seus comparsas.
Existe uma incipiente representação da ordem na cidade, configurada em Link, um xerife indolente e medroso, o que reforça a posição predominante na região.
Por outro lado o editor do jornal (O’brien), através da imprensa se torna um aliado do jovem advogado, disseminando idéias que são aproveitadas por ele em suas aulas.
É compreensível que Ranson, embora amigo de Doniphon, se veja perplexo anti a sua posição e o identifique, com pesar, com o facínora que o espancara.
No primeiro choque cultural, Ranson é fragorosamente derrotado, mas, ao longo da narração, ele e seu discurso, mediante uma ação fomentadora, ganham espaço paulatinamente.
 Entretanto, o seu crescimento encontra um obstáculo em Valance, o que só termina com a sua morte.
Para por termo ao status quo anterior e definitivamente dar espaço a uma sociedade com uma nova ordem, faz-se necessário um último ato de violência, ou seja, a morte de Valance.
Todavia, a morte de Valance encerra, também, a época de Doniphon, que desaparece nas sombras, enquanto Ranson vence sua primeira eleição até se tornar governador e depois senador.


4 - A Simbologia de cada Personagem neste Artigo.
Representativamente, Ranson incorpora uma postura avançada em termos de normatização, em face do status quo vigente, pois busca validar as suas crenças através do discurso, enquanto Doniphon representa uma posição mais autoritária que se firma em uma moral aceita pela comunidade em questão, mas que se impõe pela força. Trata-se, pois, de uma afirmação Hobesiana[2], no sentido de que afirma que a lei advém da autoridade e não da verdade.
Valance, por sua vez, é o contraponto que demonstra a fragilidade da posição de Doniphon, comumente aceita no início da narrativa, visto que confirma a posição da força autoritária, mas sem uma moral rígida, demonstrando que o mais forte prevalecerá independentemente de conceitos válidos emergentes da comunidade, tais como verdade e justiça, por exemplo, ou da aceitação ampla desta sociedade quanto ao que se tem por aceitável enquanto valores por esta mesma comunidade.
Link, preguiçoso, indolente, mas um simpático de bom coração corresponde à norma formalmente correta[3], mas sem legitimação por não conter um parâmetro que reflita os valores daquela comunidade.
Peobady é a consciência social e política, que começa a surgir, mas ainda fraco ganha com a chegada de Ranson, que trás suporte racional e técnico para alavancar suas idéias, até então toleradas, mas ignoradas pela comunidade, incluindo Doniphon e Valance.
A própria cidade de Shibone representa o micro-universo que abriga toda esta questão de choques de valores que serão resolvidos pelo discurso introduzido por Ranson.

5 - Kant e o Homem que Matou o Facínora.
Kant, em “Crítica à Razão Pura”[4], afirma que a única ação livre é a que se funda no senso de dever, ou seja, na racionalidade pura. Para ele, é nela que se baseia a existência do direito, ou seja, para a harmonia e conciliação das condutas livres.
Para Kant, o imperativo categórico, isto é, aquilo que é reconhecido universalmente como direito de todos, deve ser buscado e é nisso que reside à legitimação desse direito.
Em sua obra “Introdução ao Estudo do Direito, Doutrina do Direito”, Kant afirma que a doutrina do direito é a soma daquelas leis para as quais é possível uma legislação externa (Direito Positivo).
Kant entendia que o direito é “a soma das condições sob as quais a escolha de alguém pode ser unida à escolha de outrem de acordo com uma lei universal de liberdade.” Esta concepção posta em sua obra “Introdução ao Estudo do Direito”, desenvolve-se, como é óbvio, a partir de sua teoria do imperativo categórico.
É possível dizer, mais uma vez, que, para Kant, apenas o direito positivo é direito e a norma aquela que se enquadre na universalidade da lei de liberdade.
Na narrativa cinematográfica, percebemos que a postura de Doniphan, considerando Shinbone como nosso universo, corresponde a uma postura de tal ordem, visto que suas posições são tidas como reflexo de uma comunidade imatura, juridicamente falando, e que encontra em um valentão de bom coração a expressão legiferante que julga necessitar naquele momento.
Doniphan é a expressão positivista do afirmativo categórico de Kant. Homem de poucas palavras, não admite o argumento discursivo, mas somente a força da lei, ou, por outro lado, a lei da força, ainda que eivado de sentimentos nobres.
Entretanto, é sensível o bastante para entender o que Valance não conseguiu ou quis, ou seja, que sua posição estava superada, embora não tivesse para eles lugar na nova ordem.
O universo hobessiano e sua transição para a visão kantiana encontram respaldo nos personagens citados e nessa relação.
A questão da legitimação do direito também foi questionada pelo filósofo americano Henry David Thoreau, no clássico “A Desobediência Civil”.
Thoreau era discípulo de Ralph Waldo Emerson, autor de a “Conduta para a Vida”, que lhe serviu de base filosófica.
Waldo Emerson fundou um movimento chamado transcendentalismo, que proclamava a liberdade individual e a tolerância universal, sob a máxima “viver, deixar viver e ajudar a viver”. Ele defendia idéias semelhantes às do discípulo.
Thoreau, por sua vez, recusou-se a pagar tributo que financiasse a guerra contra o México e que servisse à ideologia escravocrata.
Ele afirmava que não devia obediência a normas criadas por quem não fora autorizado pelo povo. Dizia ainda que o governo que menos governa é o melhor governo e defendia também a desobediência civil como forma de resistência.
Thoreau teria admiradores como Leon Tolstoy, Gandhi e Martin Luther King.
Ao longo do século XX, vários autores vêm se preocupando com a legitimidade das normas e decisões.
Este questionamento surge ao longo da narrativa através de Peabody, o editor do jornal, que embora progressista e questionador da ordem vigente, é indisciplinado e beberrão, razão pela qual era visto com simpatia e certa jocosidade, assim como Thoreau.
Todavia, esta postura em relação à Peabody muda quando este se alia a Ranson, posto que seu discurso torna-se aceitável e palatável em face da comunidade, dada a racionalidade argumentativa do seu novo aliado, razão pela qual ele e seu jornal passam a ser vistos como uma ameaça para Valance e os seus comparsas.

6 - A Postura Positivista no Filme.
O positivismo se estabelece entre Doniphon e Ranson, concentrando-se claramente no primeiro, visto que é ele quem adota uma postura determinista e protetora (paternal) em face dos membros da comunidade.
O positivismo, mais do que a simples questão da norma editada, trás a relação entre paternidade e a lei, imposição de limites e permissões. O seu elemento deôntico, fator fundamental da norma jurídica, se expressa através do pai.
O livro “Do Direito ao Pai” [5] deixa clara a importância da função paterna na transmissão da premissa de obediência à lei.  Para a autora, professora de psicologia da Newton de Paiva, não é sem razão que Kelsen chama a autoridade paterna para exemplificar a autoridade imaginária.
Na verdade o positivismo muito mais se liga ao determinismo da norma escrita, do que à sua própria existência, já que os pós-positivistas não rejeitam ou negam a validade da norma escrita, mas tão somente o determinismo que os positivistas entendem que ela deva ter.
Esse positivismo determinista é encarnado por Doniphan, mas é, paulatinamente, substituído por Ranson, que chama, de certa forma, todos os envolvidos para participar das decisões importantes para o grupo.
Portanto, a autoridade determinista do Estado é substituída, aos poucos por outra, fundamentada na participação  de todos nos elementos decisórios que os envolvem.

7 - A Postura Discursiva representada por Ranson: Alexy, Günther e Habermas, e Dworkin.
Ranson representa as teorias modernas quanto à legitimação e criação da norma, o que será analisado nos subitens que se seguem.

7.1 - Ranson e Alexy.
Para Alexy, na obra “Teoria dos Direitos Fundamentais”, normas são princípios e regras.  Segundo ele, princípios são normas de otimização, ou seja, prima facie, ou mandados de otimização, enquanto regras são normas cujo mandamento expressa uma determinação, por isso serão cumpridas ou não.
A colisão entre normas implicará na invalidação de uma delas, exceto se introduzida em uma delas uma cláusula de exceção, caso em que deixara de ser determinante ou absoluta, no seu aspecto deôntico, para se tornar, também, um mandamento prima facie.
Segundo Alexy, a colisão entre princípios em face do caso concreto, exige a aplicação de um em detrimento do outro, sem que isso implique em sua invalidação.
Para ele, nesse caso deve se aplicar a regra da ponderação, para que possa ser determinado qual princípio, em face do caso concreto, deve ser aplicado.
Entretanto, será que tal questão pode ser identificada durante a película ou haveria um conflito entre a teoria de a Alexy e a obra cinematográfica de John Ford?
Em primeiro lugar, uma ordem, via de regra, não é substituída por outra de imediato, havendo, em geral, um período de transição.
Houve um momento em que Ranson e Doniphon eram vistos como dois pilares normativos válidos e, conquanto já se iniciava a aceitação da ordem representada  por Ranson, em dado momento em que tais princípios foram colidentes, uma foi aplicada sem invalidação da outra.
O momento marcante em que isso se deu foi quando Valance é abatido a tiros durante o duelo com Ranson. O advogado se propôs ao duelo por entender que, naquele momento, ainda que postulasse uma ordem diversa, diante do caso concreto, era o que devia ser feito, tanto assim que possuía uma arma.
Entretanto, desaparecida a questão que permitia a aplicação daquele princípio, ele não foi mais aplicado por Ranson, que prosseguiu nos termos iniciais de seu discurso.
É aí que entra outro aspecto da teoria de Alexy. Alguns dizem que, em alguns casos, a colisão entre princípios vai levar a invalidação de um deles de forma absoluta, o que tornaria sem sentido a distinção existente entre norma e princípio posta naquela obra.
Entretanto, Alexy, esclarece que quando um princípio não pode mais ser aplicado, é porque não foi recepcionado pelo sistema jurídico vigente, não havendo que se falar em colisão de norma válida e de uma norma invalida.
Assim, exemplifica muito bem o autor ao mencionar a invalidação do princípio da superioridade racial, acolhida durante o Estado Nazista e que não foi recepcionado pelo sistema jurídico que lhe seguiu, não havendo que se falar em colisão entre aquele princípio e o princípio da igualdade.
Notadamente, o que acontece em casos como tal é a invalidação daquele princípio por sua absoluta incompatibilidade com o sistema jurídico em vigor.
Da mesma forma, a abolição da justiça privada, de forma absoluta, como se vê, posteriormente, no desfecho do filme, se dá, exatamente pela invalidação do princípio da justiça privada, em face do sistema que passou a vigorar á partir de então, com o fim da transição de um sistema para o outro, tanto assim que, Doniphan, no fim da vida, não portava, ele também, qualquer tipo de armas e, segundo um dos personagens, “há muitos anos”.
Portanto, algumas questões que atormentam os jusfilósofos há muito tempo, foram acolhidas, intuitivamente, por John Ford, um artista da sétima arte, mas sem formação jurídica ou filosófica.

7.2 – Ranson, Gunther e Habemas.
Conquanto Alexy tenha uma obra intitulada “Teoria da Argumentação Jurídica”, optamos, nesse trabalho, trabalhar com a obra de Klaus Gunther “Teoria da Argumentação, no Direito e Na Moral”.
Ranson, no início do filme, parece tão incompatibilizado com a ordem social de Shinbone que, apesar de sua cultura, só está apto a lavar pratos e servir as mesas, função que naquele local é exclusivamente feminina.
Entretanto, pouco a pouco ele consegue, através de uma prática discursiva constante, ele passa a interagir com os habitantes, começa um processo de alfabetização dos negros, mulheres, pobres, mestiços, mexicanos e pequenos agricultores.
A conduta de Ranson, em primeiro lugar, reduz o abismo cultural existente e introduz a comunicação e participação de grupos sociais e étnicos que não eram ouvidos até então.
Portanto, é a partir daqui que a teoria de Günther, pode ser identificada com a conduta de Ranson.
Foi Gunther quem desenvolveu a teoria quanto á diferenciação entre o discurso de fundamentação e o discurso de aplicação e não Habermas, como muitos acreditam, embora exista uma relação entre eles, convém dizer que Habermas acolheu a teoria de Klaus Günther em sua obra “Direito e Democracia”, e não o contrário.
Para ele, a fundamentação está ligada á validade da norma. O processo de justificação da norma se apóia no seu critério de validade.
Habermas (Direito e Democracia), por sua vez, entende que a norma é legitimada quando resulta de uma comunicação racional, que ela é resultado do consenso entre todos, ou seja, aqueles a quem ela se direciona.
Para Habermas, a norma é legitima quando resulta do consenso daqueles a quem ela é destinada, razão pela qual só é possível na democracia, quando os direitos fundamentais são garantidos.
É uma visão democrática e inclusiva do direito, desde a sua criação, até a sua aplicação nos casos concretos, como será mencionado adiante com mais detalhe.
Habermas fundamenta sua teoria com base no agir comunicativo. Para ele os processos de ação comunicativa têm funções recíprocas de construção da sociedade, cultura e personalidade pelas interações e mediações da linguagem.
Esta teoria tem muito sentido se compreendermos que, Lacan, segundo Quinet na sua obra “A descoberta dão Inconsciente, do Desejo ao Sintoma”[6] afirma que a mente humana é estruturada pela linguagem. O homem para ele é linguagem posto que é um ser cultural. É a linguagem que o humaniza e o afasta, definitivamente, da natureza, definindo-o e o estruturando, razão pela qual é lógico que todo o progresso científico e filosófico passe pela linguagem, por um discurso racional e estruturado.
Para Lacan, é na linguagem que habitamos e por ela somos habitados. Segundo ele o inconsciente de Lacan é estruturado de acordo com a linguagem que habitamos e que habita em nós.
A linguagem se origina no Édipo, nome do pai, primeiro significante.
Para Lacan, a linguagem é individual, mas a fala ou o discurso implica no reconhecimento do outro.
Eis porque, qualquer teoria séria do direito deve passar pela linguagem e pela prática discursiva. Daí a importância da teoria discursiva de Habermas e da teoria dos discursos de justificação e aplicação desenvolvidos por Günther.
Para Günther, o discurso de aplicação está ligado à gênese da norma, posto que a criação da norma, como dito, deve estar apoiada no consenso resultante do discurso racional.
A norma jurídica deve ser gerada pelos seus destinatários, ou seja, os membros da comunidade que ela irá regular. Somente aí pode haver legitimação, visto que se justifica nas diretrizes e verdades daquela comunidade.
Pois bem, é isso que Ranson faz ao introduzir a participação de toda a comunidade nas decisões de formulação normativa daquela comunidade. É partir daí que a comunidade de Shinbone faz valer a inclusão de normas que garantiam o direito dos pequenos agricultores, bem como a sua independência política e administrativa, contra os interesses dos grandes latifundiários.
Basta dizer que Doniphon embora ligado ao seu ajudante negro (interpretação de Woody Strode), cujo nome é Pompey e que ficou ao seu lado até o fim da vida, sempre mantém com este uma relação de cordial superioridade, que se torna mais determinante em momentos críticos, quando, por exemplo, o retira da sala de aula em que aprende noções de história e cidadania, enquanto está sendo alfabetizado.
Lado outro, Ranson mantém com Pompey um relacionamento que é mais vantajoso para ambos, pois dialoga com ele, houve o que tem a dizer, respeitando, inclusive, suas limitações na sala de aula.
Eis a essência dos relacionamentos de Ranson, ele é inteiramente dialógico, comunicativo, discursivo, estabelecendo-se sobre o dizer e ouvir, oferecendo benefícios á todos os participantes da relação.
Um exemplo claro disso está na sua relação com Hallie (Miles), posto que este propõe ensinar-lhe a ler e ela se torna a sua companheira por toda a vida. Da mesma forma, ele propõe a dialogar e educar os cidadãos de Shinbone e estes o elegem.
Alguns diriam que a conduta de Ranson ao travar um diálogo racional com os excluídos de Shinbone só ocorreu porque ele, um advogado esclarecido, era também um excluído, visto que era pobre e, segundo a ordem social vigente no início do filme, totalmente inapto para ocupar uma posição de destaque na sociedade, além de ser um forasteiro, tanto assim, que de início, só conseguiu lavar pratos e servir mesas, sem muito sucesso, inclusive, funções menosprezadas por aquela comunidade.
Entretanto, tal afirmativa seria inócua, para não dizer irrelevante, visto que o que importa é que ele optou por uma prática discursiva, não violenta, igualitária e inclusiva e que este posicionamento foi bem sucedido.
É Stoddard quem introduz o diálogo, o discurso racional, a igualdade e, portanto, a democracia em Shinbone, correspondendo, neste aspecto ao posicionamento de Klaus Günther e Jurgen Habermas quanto à validação da norma jurídica em uma democracia, conferindo estabilidade às garantias fundamentais que devem existir em favor de todos os grupos que compõem à sociedade, sejam eles de natureza étnica, social, religiosa ou cultural.

7.3 – Ranson e Dworkin.
Quando Ranson Stoddard chega em Shinbone, já existe uma comunidade instalada, o que faz supor um passado, uma história, um desenvolvimento que não nos é dado saber, mas que podemos pressupor, pois ali já existem edificações, habitantes, relacionamentos, atividades de ordem econômica, etc.
Portanto, havia uma sociedade em desenvolvimento, inclusive no sentido sócio-jurídico.
Nesse contexto, Stoddard se insere e começa a dar a sua contribuição para essa construção.
Antes dele havia uma ordem social e normativa que se fez representar nas telas por Tom Doniphon, interpretado por John Whayne, um dos atores preferidos de Ford e de quem foi, praticamente, mentor.
Não existe confronto ou oposição entre Ranson e Tom, embora haja divergência, mas o fato é que eles não se excluem antes se complementam no sentido de que cada um responde pela sua função construtiva até onde deve ser contribuindo para a narrativa geral.
Ranson é o protagonista, mas Doniphon não é o seu antagonista, antes, co-protagoniza junto com o primeiro, cada um dando a sua contribuição para a narrativa.
Doniphon representa o pai (Estado), protetor e repressor (fatores deônticos), que impõem a sua lei em face de uma autoridade que se justifica em si mesmo.
Ranson, por sua vez, representa o pai (Estado), que sem rejeitar os fatores deônticos, se abre para o diálogo, e firma a legitimidade de sua autoridade sobre a participação daqueles a quem ela se dirige.
Para Ranson, isto fica claro durante todo o desenrolar da trama, a lei deve ser aplicada, mas não uma lei que se baseia na força, mas aquela que se firma na concórdia resultante da participação dialógica e discursiva.
É nesse cenário que a teoria de Ronald Dworkin, na sua obra “O Império do Direito”, aponta diretrizes[7], na sua discussão sobre o papel dos juízes, sua atividade construtiva:

(...) o presente livro expõe, de corpo inteiro, uma resposta que venho desenvolvendo aos poucos, sem muita continuidade, ao longo de anos: a de que o raciocínio jurídico é um exercício de interpretação construtiva, de que nosso direito constitui a melhor justificativa do conjunto de nossas práticas jurídicas, e de que ele é a narrativa do que faz dessas práticas as melhores possíveis. (Dworkin, 2007).

Para Dworkin, o direito é um exercício construtivo, que é uma narrativa, um desenrolar que vai se desenvolvendo, á partir da contribuição de cada um dos seus agentes.
A própria natureza do filme, uma narração dentro de uma narração, deixa claro que as mudanças ocorridas se deram pela construção metódica e cotidiana de todos os personagens que se dedicaram a contribuir para o desenvolvimento da história do sistema jurídico daquela sociedade.

8 - Conclusão.
A arte muito contribui para as ciências que, em regra, ingratas não o reconhecem.
Todavia, não restam duvidas de que a ciência jurídica muito tem a ganhar em sua aproximação com a arte, sobretudo as artes cênicas por sua íntima relação com a literatura, esta última, certamente a que mais contribui para as ciências jurídicas.
Propositalmente, foi escolhido um filme que, a priori, não guarda relação com as ciências jurídicas, posto que não se desenvolve em um cenário de tribunais ou como personagens advogados, promotores e juízes.
A intenção é mostrar que é inerente ao artista a captação de anseios sociais que serão canalizadas, muitas vezes de forma imperceptível à primeira vista, para o objeto de sua sensibilidade, ou seja, a sua obra.
Ford, em um filme de faroeste conseguiu inserir conflitos sociais e jurídicos que, muitas vezes, passam despercebidos ao telespectador menos atento, mas que vem se configurando em questões que são frutos da indagação de muitos dos notáveis jusfilósfos de vários anos, eles também, fazendo a sua narrativa e trabalhando na construção e integralidade do direito.

Referências Bibliográficas.
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. 9ª Ed. São Paulo: Malheiros, 2009.
              DWORIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
              EMERSON, Ralph Waldo. A Conduta Para a Vida. Trad. C. M. Fonseca. 2004.
              FERNANDES, Bernardo Gonçalves; PEDRON Flávio Quinaud. O Poder Judiciário e(m) Crise. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2008.
GÜNTHER, Klaus. Teoria da Argumentação no Direito e na Moral: Justificação e Aplicação. Trad.Claudio Molz. São Paulo: Landy Editora, 2004.
HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia, entre facticidade e validade I. Trad. Flávio Beno Siebeneichler. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Temo Brasileiro, 2003.
             HOBBES, Thomas. Leviatã ou a matéria, forma e poder de um Estado Eclesiástico e Civil.  Trad. Rosina D´Angina. 2ª Ed. São Paulo: Ícone, 2000.
KANT, Immanuel. Introdução ao Estudo do Direito, Doutrina do Direito. Trad. Edson Bini. 1ª Ed. São Paulo: Edipro Edições Profissionais, 2007.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. In os Pensadores. Trad. Valério Rohden e Udo Baldur Moosburger. 4ª Ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991.
BARROS, Otoni Fernanda de. Do Direito ao Pai. Vol. 2 (Coleção Escritos em Psicanálise e Direito). Belo Horizonte: Del Rey, 2001.
QUINET, Antonio. A Descoberta do Inconsciente do Desejo ao Sintoma. 3ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
THOREAU, Henry David. A Desobediência Civil e Outros Escritos. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martins Claret, 2005.
WAYNE, John; WOOD, Natalie. Rastros de Ódio. Livro – DVD, Vol.11 (Coleção Folha Clássicos do Cinema). Trad. Elisabeth Xavier de Araújo. São Paulo: Editora Moderna, 2009.  


[1]  Retirado da biografia que consta do livro-Dvd “Rastros de Ódio” da coleção Folha Clássicos do Cinema.
[2] HOBBES, Thomas. Leviatã ou a Matéria Forma e Poder de um Estado Eclesiástico. Editora Ícone, 2000.
[3] Link é um xerife eleito, mas que, no caso do filme, não corresponde aos anseios da comunidade.
[4] KANT, Immanuel. Crítica da Razão Pura. Editora Cultura, 1991.
[5]  BARROS, Fernanda Otoni. Do Direito ao Pai. Belo Horizonte. Del Rey, 2001.
[6] QUINET, Antonio. A descoberta do Inconsciente, do desejo ao sintoma. 3ª Edição. Rio de Janeiro. Zahar, 2008.
[7] Dworkin, Ronald (2007)
² Encarnação, João Bosco (1999)

Um comentário:

  1. Apesar do pífio conhecimento em Direito, pude aprender um pouco sobre várias vertentes desta disciplina, nesta abordagem sobre um filme de faroeste e a fundamentação jurídica. É claro que vou ler outras vezes o artigo, pela dificuldade que tenho em aprender sobre os conteúdos desta natureza, porém endosso o caminho didático de enxergar na arte cinematográfica o aprendizado e aplicabilidade do saber jurídico.

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