sábado, 19 de janeiro de 2013

Direito e Cinema - O Solista


DIREITO, CINEMA E LITERATURA: O SOLISTA, O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, OS DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS EXCLUIDOS

Lailson Braga Baeta Neves[1]
Edimur Ferreira de Faria[2]


RESUMO
Tanto o livro quanto a obra cinematográfica “O Solista” narram a história de Nathaniel Antony Ayers e sua relação com o jornalista Steve Lopez, autor do livro. Nathaniel foi aluno brilhante da famosa escola Jilliard, mas em face de uma série de surtos psicóticos, abandonou o curso e acabou por se tornar um morador de rua após a morte de sua mãe. Steve o conhece, certo dia, quando ia para a redação do “Los Angeles Times”, enquanto ele tocava violino nas ruas. A partir daí inicia-se uma amizade que conduz o leitor/espectador ao mundo dos portadores se sofrimento mental e dos “moradores de rua”, e a luta para sua integração, mas observando-se os seus direitos, dignidade, permitindo-lhes sempre, a manifestação e expressão livre de sua vontade. Neste artigo, sob a apreciação dessas obras, em face de sua mensagem universal, analisa-se as mais modernas  e contemporâneas doutrinas no que diz respeito aos direitos fundamentais e sua relação com os princípios basilares da Constituição Brasileira de 1988 e do Estado Democrático de Direito.

Palavras chave: pessoa, dignidade humana, direitos, inclusão, autonomia, intervenção.








1-Introdução.
O presente artigo tem por escopo, sob a ótica do filme e o livro “o solista”, analisar a aplicação dos princípios fundamentais estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, focando no princípio da dignidade da pessoa humana, bem como nos direito fundamentais elencados na mencionada Constituição.
A intenção é verificar se a obra em foco apresenta elementos que propiciam refletir-se sobre tais questões, inclusive sobre a necessidade ou não da intervenção estatal ou de organismos que busquem proporcionar a inclusão social sem, contudo, violar a autonomia do cidadão.
Além disso, busca-se demonstrar que algumas normas estabelecidas administrativamente podem se tornar obstáculos ao desenvolvimento de ações, especialmente em juízo, quando se faz necessária a intervenção do Estado-Juiz para conferir medidas judiciais que visão a inclusão social da pessoa humana, conferindo-lhe os direitos e garantias inerentes ao cidadão e assegurando-lhe a dignidade.
As ideias postas no filme serão confrontadas com a visão doutrinária sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais, conforme Alexy, Ávila, Gadamer, Habermas, Sarlet, dentre outros.
A princípio, serão analisadas as obras cinematográfica e literária, considerando o conteúdo da história, sua ficha técnica, para posteriormente relacioná-las, assim como seus protagonistas com a disposição Constitucional.
Posteriormente serão feitas as considerações gerais e finais.

2. O livro
O livro é de autoria de Steve Lopes, jornalista que tem uma coluna no “Los Angeles Times”.
Certo dia, quando fazia o caminho de volta para sua casa o autor ouviu o som de um violino executando Beethoven[3].
O autor estava apressado para entregar a sua coluna no jornal, mas mesmo assim, parou e viu um maltrapilho morador de rua executando a peça em um violino que, segundo ele, “mais parecia tirado de um latão de lixo”.
Diante disso, parou e puxou conversa com o músico de rua: Era Nathaniel Ayers, ex-estudante da Juilliard, uma das mais importantes escolas de música do mundo. Negro e de origem humilde, se destacou pelo seu inegável talento, em face das pressões sofridas, acabou sucumbindo à esquizofrenia e, diante de tantos surtos, terminou como morador de rua.
O instrumento de Nathaniel era o violoncelo (no livro contrabaixo), entretanto, por causa da redução de sua condição de excluído social só lhe restou aquele violino sovado (velho e com apenas duas cordas).
Steve Lopez começa a escrever sobre Nathaniel, mas, mais do que isso, trava uma amizade com o músico que renderá mudanças na vida de ambos. Lopes passa a ter contato com um grupo de pessoas que são excluídas da sociedade.

3. O filme
O filme retrata a história trazida no livro de Steve Lopes e é dirigido por Joe Wright que tem no seu currículo obras como “Orgulho e Preconceito” e “Desejo e Reparação”.
Trata-se de cineasta inglês, acostumado a temas sociais, o que lhe permite uma penetração no enredo, mantendo uma equidistância regional com a imparcialidade necessária.
O personagem de Nathaniel é interpretado por Jamie Foxx, ator consagrado e premiado pela sua atuação em “Ray”.
Steve Lopez é interpretado por Robert Downey Júnior, ator também consagrado e premiado por sua atuação em “Chaplin”, e que viveu a glória e o declínio em face do seu envolvimento com drogas.
Tanto a direção quanto o elenco nos parecem acertados para viver uma história de exclusão social, glória e declínio.
É importante ressaltar que moradores de rua, em um projeto de inclusão social, atuaram no filme na condição de figurantes.
Houve, durante as filmagens, uma aproximação com a realidade e uma tentativa de participação ativa dos reais protagonistas (os excluídos), na construção da obra.
É importante ressaltar que o filme informa de que existem, atualmente, 90.000 moradores de rua na cidade de Los Angeles, quebrando a falsa ideia de que os Estados Unidos, país mais ricos do mundo é, também, um lugar em que a democracia e a justiça social não se realizam de forma plena.
O filme, assim como o livro, quebra outro paradigma que é a vítima que precisa de socorro do herói imune a qualquer fraqueza.
Nas duas obras mencionadas, assim como em outro filme, “O sonho Possível”, cuja protagonista é Sandra Bullock[4], o que se vê é a quebra do modelo de personagem “caridoso”.
O que se percebe nas telas é a construção de uma relação entre os protagonistas, por meio da qual aqueles personagens que numa visão tradicionalista seriam os imbatíveis heróis, se mostram frágeis e acabam crescendo em consciência política e social.
Uma vida às vezes fútil e vazia é enriquecida pelo personagem central da história, pois esta lhe confere conteúdo e uma nova visão da vida, retirando-lhes da passividade de meros observadores para ativista da vida cidadã.
A relação entre os atores principais revela-se, em síntese, equilibrada não só pelos vínculos afetivos, mas também pelos ganhos reais para os envolvidos por meio da descoberta e construção constante de valores e motivadores capazes de realizar a construção humana mediante a edificação linguística, dialógica e promovente da fusão das realidades antes tão distintas.
Cumpre salientar, também, que tanto o livro como o filme, por tratarem da questão referente á alienação mental, desamparo do Estado e, por consequência, dos moradores de rua, torna universal o tema, apesar de se passar em Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos.
No Brasil, o tema torna-se relevante em face do elevado número de pessoas excluídas socialmente, tanto na zona urbana como na rural.

3. Os valores postos no filme e no livro
O livro trata da vida de Nathaniel Ayers e de sua derrocada em face do acometimento de surtos frequentes em razão da esquizofrenia diagnosticada.
Em virtude da doença a que fora acometido, o protagonista teve afetada a sua dignidade expressa por um abandono total pelo Estado e pela sociedade que não lhe socorrem quanto a questões básicas, compreendendo habitação, assistência médica, jurídica, entre outras.
Por outro lado, se está a se exigir a intervenção do Estado em favor do protagonista, por outro, impõe-se, pelas mesmas razões de direito, que sua autonomia, sua individualidade e sua valoração sejam respeitadas.
É esta gama de valores mencionados que, ás vezes, entra em conflito e merecem ser analisados e dirimidos em face da situação concreta que se apresenta.

4. O Dispositivo Constitucional basilar
O artigo 1º da Constituição de 1988 estabelece de forma clara a federação e o Estado Democrático de Direito, para, em seguida, instituir os seus fundamentos, ou, melhor dizendo, os seus princípios fundamentais que são: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e; o pluralismo político.
No parágrafo único estabelece-se o poder como emanação do povo que o exerce através de seus representantes.
Vê-se que  o artigo 1º da Constituição não só estabelece o Brasil enquanto uma República Federativa, como proclama o Estado Democrático de Direito como sendo a forma jurídica deste País.
Os seus incisos, arrolam os princípios fundamentais, basilares e norteadores do Estado Democrático de Direito Brasileiro.
É com base nesses princípios que se estabelecem os poderes da União e, em seguida, os objetivos fundamentais do Brasil que são: constituir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais e; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
O Estado Democrático de Direito não se estabelece sem os princípios basilares e estes, por sua vez, exigem, para a sua efetividade, entre outras, a constituição de uma sociedade justa, livre e solidária; o que se faz por meio do desenvolvimento nacional e da erradicação da pobreza e da marginalização.
Naturalmente, isso não se faz, a não ser em uma sociedade sem desigualdades sociais e regionais e sem qualquer tipo de discriminação, como inserto no inciso IV do art. 2º.
Os direitos fundamentais positivados na Constituição, em particular os dispostos no art. 5º (direitos civis), tem por escopo a garantia de toda essa gama de princípios e objetivos constitucionais.
Opta-se por fazer esta abordagem em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana por ser o mais emblemático de todos, o que permite a facilitação da transposição do raciocínio aqui desenvolvido para qualquer deles.
Nesse aspecto, a narrativa da vida de Nathaniel Ayers é fundamental para a reflexão da necessidade de aplicação de tais diretivas em face de um caso concreto, pela simples transposição e análise dos fatos.
5. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
A dignidade da pessoa humana é, talvez, o princípio basilar de todos os demais, visto que o reconhecimento da dignidade humana promove a valoração dos demais princípios, tais como cidadania, pluralismo, soberania, entre outros.
Aludido princípio, nunca antes positivado em constituições brasileiras, originou-se e fundamenta-se na doutrina cristã.
Entende-se que o ser humano, criado a semelhança de Deus contém, em si, a inata dignidade inerente á sua condição única de similar ao Criador.
O princípio em foco foi acolhido pelo direito, em especial pelo jusnaturalismo e vem sendo á base do constitucionalismo contemporâneo, no que diz respeito aos direitos fundamentais que, em grande parte, são derivativos do princípio da dignidade da pessoa humana.
Tailhard de Chardin, na obra o “Fenômeno Humano” destaca as características que fazem do homem um ser dotado de dignidade intrínseca:
“ Na verdade, duvido que haja, para o ser pensante, minuto mais decisivo do que aquele e que, caindo-lhe a venda dos olhos, descobre que não é elemento perdido nas oscilações cósmicas, mas que uma universal vontade de viver nele converge e se hominiza. O Homem, não centro estático do Mundo – como ele se julgou durante muito tempo, mas eixo e flecha da evolução – o  que é muito mais belo.” (CHARDIN, 2006, p. 28)
Embora considerada um atributo inato á natureza humana, alguns autores ressaltam os contornos sociais ou de certas sociedades no que diz respeito á aspectos da dignidade da pessoa humana.
Vale dizer, certa forma de tratamento a inserção ou o posicionamento da pessoa em determinado grupo social pode provocar uma afetação de sua dignidade, o que não ocorreria em outras sociedades em face da mesma situação.
Apenas a título de exemplo, e para caracterizar o que já foi dito, apoiando-se ainda nas obras referidas, pode ser que em uma comunidade nômade a questão da inexistência de moradia ou habitação não tenha influência na qualidade de vida da pessoa, não se podendo dizer o mesmo quanto a uma comunidade sedentária em que a propriedade e a habitação são referências não só de inserção como de posicionamento social.
Assim, pois, apesar da alegação quanto à natural qualidade deste princípio, deve-se destacar a importância dos valores de determinado grupo para se definir quanto á observância e verificação da efetivação do princípio em face da realidade em concreto.
Existe, pois, forte conteúdo cultural e histórico na construção desse princípio em exame.
Sobre o tema assevera Sarlet:
“A qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da vida.” (SARLET, 2009, p. 67)
O conceito alinhavado por Sarlet não discrepa de outros, em termos de concepção, além disso é completo e rico em conteúdo, razão pela qual se dispensa a transcrição de outros conceitos, por certo, aceitáveis em face de sua precisão e conteúdo.
6. O Princípio da Dignidade Humana e os excluídos
Diante do que já foi exposto, está claro que em face da nossa sociedade e os seus valores, a situação dos “sem teto”, ou “moradores de rua” está em desacordo com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Não se duvida de que a pessoa sem habitação, assistência médica ou psicológica, assistência educacional e jurídica, não tem o tratamento que faz jus em razão da sua condição de ser humano.
A construção histórica deste princípio, na sociedade brasileira, prescreve que as pessoas com menores condições devam ter a possibilidade de se verem incluídas socialmente.
O morador de rua  pessoa sem qualquer recurso financeiro, cultural ou social cabe ao Estado, a família e a sociedade, tem direito à ajuda do Estado para a sua inserção na sociedade.
Entretanto, é preciso que a inserção se faça de maneira não invasiva, considerando e respeitando a natureza humana e a individualidade daquele a quem se pretende assistir. É este aspecto que tanto o livro quanto o filme “O Solista” deixa claro.
Lopez, ao conhecer Ayers, passa a se interessar por ele, bem como pela situação dos “sem teto”, procurando trabalhar junto a Nathaniel tendo como foco a sua própria sensibilidade, o amor pela música.
É verdade que, no princípio, Lopez pretendia que se impusesse a Ayers métodos de tratamento e recuperação sem levar em conta a sua liberdade e sua vontade, o que seria também, uma violação ao princípio da dignidade humana, a despeito das intenções do autor serem as melhores possíveis.
Lopez vale-se do discurso e da linguagem, na mesma proporção em que Bohnn o faz em sua obra “Diálogo”. Convém analisar a importância da linguagem e do diálogo como meio de construção de uma solução adequada para o convencimento do excluído.
Para que não haja dúvidas quanto ao que se está discutindo aqui, não se pretende que a solução de questões desse jaez seja resolvida sem políticas efetivas do Estado em prol das pessoas excluídas.
Todavia, o convencimento e a inserção psicológica, devem ser realizados pela interação com a pessoa ou pessoas que se pretende incluir.
Tais pessoas, aviltadas e espezinhadas em sua dignidade, encontram-se em um estado, que necessita de medida interativa e dialógica, para se sentirem motivadas a participar de programas governamentais e não governamentais.
7. A Linguagem Para a Psicanálise
7.1 A Teoria da Linguagem para Lacan
A teoria da linguagem para a psicanálise tem muito sentido se compreendermos Lacan.  Quinet na sua obra “A descoberta do Inconsciente, do Desejo ao Sintoma”, ao comentar a visão Lacaniana, afirma que a mente humana é estruturada pela linguagem. O homem para ele é linguagem, um ser cultural. É a linguagem que o humaniza e afasta o homem definitivamente da natureza, definindo-o e o estruturando, razão pela qual é lógico que todo o progresso científico e filosófico passe pela linguagem, por um discurso racional e estruturado.
Para Lacan, no seu inconsciente, é na linguagem que habitamos e por ela somos habitados. Afirma ainda, que a linguagem é individual, mas a fala ou o discurso implica o reconhecimento do outro.
É preciso, contudo, diferenciar significante de significado, o primeiro é a palavra, o símbolo e o segundo, o conteúdo a ele aplicado. Tal compreensão é fundamental para compreender as diferenças de entendimento em face da mesma linguagem ou sinal simbólico.
Convém salientar que, para Lacan e Quinet, a linguagem não se limita ao exercício oral, mas em toda utilização gestual, simbólica ou representativa que tenha a função de comunicação, incluindo as expressões gestuais e faciais.
A linguagem, por sua vez, se origina no Édipo, na primeira palavra que é o reconhecimento do nome do pai, segundo Freud na obra “Totem e Tabu”. Eis porque, qualquer teoria séria do direito deve passar pela linguagem e pela prática discursiva.
7.2 A Visão de Freud
Para Freud (1999), tanto a lei quanto a neurose tem origem no pai primitivo. Os filhos matam o pai dominador, mas em virtude da culpa e da ausência da Lei constroem o totem como culto ao pai. O totem é referência à proteção (pai, lei) e o tabu ao que é proibido ou digno de proteção.
A primeira palavra, segundo a doutrina freudiana, foi o nome do pai, consistindo a linguagem em uma busca da construção do pai primitivo ou a Lei.
A linguagem, portanto, se origina no “Édipo” (nome do pai), que é o primeiro significante. Daí, a origem íntima entre linguagem, psicanálise e direito; questão esta, importante para este trabalho.
Daí a conclusão de que o homem se constrói pela linguagem e, portanto, o direito é fruto de uma construção linguística.
7.3. Habermas  
Segundo Habermas, a norma deve ser construída pelo discurso dos envolvidos. Assim, é preciso uma sociedade atuante para a construção de regras orientadoras de ações em favor dos excluídos.
De outra sorte, faz-se necessário que aos excluídos, sejam permitidas voz e vez para participarem de seus destinos por meio do diálogo, quer seja no nível individual ou coletivo.
O personagem Lopez representa tanto o Estado quanto à sociedade que se movimenta entre o desinteresse ao intervencionismo absoluto para se fixar, finalmente, no diálogo.
7.4. Gadamer
Hans-Georg Gadamer, filósofo alemão, é o autor de várias obras, como: “Verdade e Método, Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica”[5] e a não menos importante “Hermenêutica em Retrospectiva”[6].
Esse conceituado filósofo europeu realizou revisão do pensamento iluminista, afastando-se da postura absolutamente racional, um cientificismo exacerbado para aproximar-se da tradição, afirmando que está irremediavelmente incrustados na cultura e na linguagem, o que torna descabido sustentar-se em certeza baseada em método inteiramente racional.
Gadamer entende que deve haver uma fusão de horizontes, considerando-se a tradição a arte e a cultura dos envolvidos, e é o que de fato se dá entre Lopez e Ayers.
É preciso postura isonômica entre os interessados ou participantes do diálogo construtivo.
7.5 O Diálogo Quântico
Para Corroborar o que foi dito até agora no que diz respeito à linguagem, pode-se tomar como referência David Bohm[7], físico quântico que tinha no diálogo um meio adequado para ampliação e revelação da consciência.
Bohm acredita que com a formação de um grupo dialógico de pessoas diferentes (culturalmente), no curso do diálogo estas diferenças se tornariam tênues e que as diferenças seriam superadas em face de um entendimento da natureza da realidade em geral e da consciência em particular, como uma totalidade coerente, independentemente do tópico ou tema levatado.
Bohm define diálogo, diversamente de discussão, como o emprego da palavra por mais de um, valendo-se da etimologia da palavra que tem origem no idioma grego (logos = palavra; dio = dois).
Assim, pela própria física quântica, o diálogo é visto como uma forma de conscientização e de solução de problemas, bem como superação de diferenças e de problemas comuns, em busca de um senso de realidade conjunto.
O diálogo exige uma postura igualitária, não competitiva e que respeite as posições do outro, mantendo-se, ainda, aberto à possibilidade de revisão das próprias posições.
Esta é uma forma viável de inclusão conforme demonstrado no filme, sem a necessidade de descaracterização da personalidade de quem quer que seja, tendo-se em vista a visão pluralista constitucional.

8. O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais
Os direitos fundamentais são derivativos dos princípios basilares e, em especial, o da dignidade da pessoa humana.
Como se disse, a prática discursiva não tem o condão de resolver a questão da inclusão do morador de rua ou de qualquer outro excluído, sem a participação voluntária e consciente deste.
Entretanto, uma vez superada essa fase, é preciso que medidas efetivas sejam adotadas.
O direito à habitação, à saúde, à educação, à vida digna, à liberdade, entre outros, são direitos fundamentais que devem ser usufruídos por todos.
Abrigos e moradias comunitárias devem estar disponíveis aos que necessitam, assim, também, como assistência médica, terapêutica e medicamentosa.
Todavia, não ocorrendo á ação estatal, diante do que dispõe a jurisprudência, impõe-se a intervenção judicial para a sua realização.
A efetiva inclusão social passa pela necessária regularização de registros de nascimento, casamento, documentos em geral, até mesmo a inserção em programas de reabilitação, tratamento e moradia.
Trata-se no caso, da defesa de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira geração, tanto de status passivo quanto ativo do Estado e que podem ser judicializados.
Alexy[8], na obra “Constitucionalismo Discursivo”, refere-se expressamente à Constituição brasileira, quando diz que os direitos fundamentais nela positivados são imediatamente justiciáveis.
Afirma que esses direitos são democráticos por que tem por escopo o desenvolvimento humano e a sua realização como meio, para tanto, é uma finalidade do Estado, razão pela qual o acionamento judicial e a intervenção do Judiciário não podem ser considerados mero ativismo judicial, mas a real possibilidade conferida ao cidadão de exigir em juízo a prestação a que tem direito.
Logo com base nisso, o ingresso em juízo pretendendo a realização desses  direitos é plenamente possível.
O estabelecimento dos princípios, espécie do gênero norma impõe a sua realização, no entendimento de Alexy[9] e Ávila[10], no máximo possível.
Ávila estabelece a aplicação da máxima da proporcionalidade para dirimir questões conflituosas, nos termos da ponderação apontada por Alexy.
Estranhamente, os Tribunais, em edição de resoluções e portarias (atos administrativos), exigem que a pessoa, para propor ação judicial deve informar dados tais como número do cadastro de pessoas físicas, nome da mãe, entre outros.
Ora, diante de alguém, que pode desconhecer até o seu próprio nome, tendo em vista que se encontra desprovido do mínimo existencial como registro público, documentos, nome dos pais, ou mesmo inscrição no famoso CPF.
É inadmissível que medidas administrativas venham sobrepor-se as normas processuais infraconstitucionais e, até, a princípios basilares como cidadania e dignidade da pessoa humana. Aludidas exigências são, portanto, inconstitucionais e devem ser repelidas.
9. A Pretensão de Correção na Decisão Judicial
A decisão judicial deve conter uma pretensão de correção e, para tanto, o processo de sua construção deve ser interativo e discursivo, nos termos já postos.
Inadmite-se que a construção da decisão deixe de considerar a participação dos interessados, quer seja na forma discursiva ou utilizando-se dos demais recursos inerentes ao processo.
Deve-se facultar as partes a exposição racional de seus argumentos, a fim de demonstrar a norma a ser aplicada ao caso concreto.
O magistrado deve perceber que a construção hermenêutica se faz interativamente e que é uma construção conjunta.
Lopez (aqui representando o Estado-Juiz) percebe e estabelece uma relação interativa com Nathaniel, buscando a solução correta e não a que lhe parece, à primeira vista, a mais viável.
 A sua aproximação não lhe retira a qualidade de observador imparcial. A sua compreensão daquele universo não o transforma em parte ou em interessado no desfecho dos rumos a serem tomados.
Curiosamente, Lopez nem sempre age assim no decorrer da narrativa, demonstrando que ele também passa por um processo de amadurecimento, passando desde o juiz júpiter (interventor) e rapidamente pelo Hércules (heróico conhecedor da lei) até chegar ao juiz Hermes (interativo com os interessados) permitindo uma construção comum e participativa.
Lopez deixa de tentar tomar o destino de Nathaniel nas mãos e passa a interagir com este, permitindo-lhe a existência digna que tem direito, dentro de seus próprios parâmetros.
É preciso garantir a dignidade da pessoa humana no espírito democrático, mas respeitando a própria compreensão daquele a quem se estende a proteção, tudo nos termos do pluralismo cultural e político predicado na Constituição.
Convém ressaltar, que o princípio da dignidade da pessoa, é um referencial hermenêutico determinante para o estabelecimento da decisão correta. Evidentemente, entre duas posições antagônicas postas em juízo, a valoração das argumentações deve ser realizada á luz do princípio da dignidade da pessoa humana.
Em face dos argumentos defendidos pelas partes, a decisão mais correta será a que melhor preserve este princípio ou a que menos a ofende.
Não há como olvidar que medidas judiciais podem ser tomadas não só contra o Estado, mas contra familiares que se omitem ou deixam a pessoa ao léu, tendo em vista os direitos fundamentais e o princípio da solidariedade, acolhido também, pela nossa Constituição.
É comum, todavia, que membros da família considerem pessoas como Nathaniel (não foi o caso dele), como mero incômodo e os abandonem à própria sorte.
É mais grave quando organismos não governamentais que se proponham a agir em favor dos excluídos, se arredem de seus fins, negando apoio a esses e, podem,  por isso, ser acionados judicialmente com base nos mesmos princípios, já que existem com o único fim de promover a inclusão social.
Para isso, é preciso que as partes, magistrados, advogados, membros do ministério público, administradores públicos, tenham em mente que os direitos fundamentais têm por escopo a preservação e o desenvolvimento do ser humano, assim como o princípio da dignidade da pessoa humana é um balizador de qualquer projeto normativo-jurídico, razão pela qual qualquer decisão que se afaste de sua consideração ainda que como referencial hermenêutico, sucumbirá em face de uma falsa correção, ainda que formalmente correta.
Tanto as políticas públicas, bem como as ações de organismos estatais ou não, ou de indivíduos, nesta seara, devem ter como base a preservação e aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Essa conduta norteou a ação das personagens, tornando viável a inserção de Nathaniel, na medida do possível e com profundo respeito às suas posições, crenças e valores.
Conclusão.
Tanto o livro quanto o filme “O Solista”, trazem em si uma narrativa e uma mensagem sobre a vida dos excluídos sociais (moradores de rua) que pode ser universalizada e analisada sob a ótica do Direito Brasileiro.
As personagens Nathaniel e Lopez personificam a evolução das relações entre um excluído e o representante da sociedade e do Estado, elevando a relação para um nível não invasivo mas participativo e de inserção social.
Por meio dessa narrativa, pode-se analisar a aplicação dos princípios basilares constitucionais, em especial o da dignidade da pessoa humana e seus reflexos sobre os direitos fundamentais.
É possível apontar à necessidade de políticas públicas destinadas a inclusão social, observando-se a efetivação dos direitos fundamentais, em especial, saúde, liberdade, autodeterminação, habitação ou moradia, além de outras.
No filme pode se notar delineada formas de inclusão não intervencionistas que respeita a liberdade e a pluralidade política e cultural, estabelecendo o diálogo, a linguagem ou o discurso como base de estruturação do ser humano, permitindo-lhe o uso daqueles recursos a fim de se ver incluído e participante da sociedade.
A própria realização do filme foi uma ação de inclusão social, já que verdadeiros moradores de rua atuaram na película enquanto figurantes e foram remunerados por isso.
As mais modernas doutrinas nacionais ou alienígenas encontram correspondência na história de Nathaniel que, por sinal, ainda vive em Los Angeles, demonstrando a sua efetiva aplicabilidade em face de casos concretos.
Os direitos fundamentais têm como finalidade o desenvolvimento humano, o que é o objetivo do Estado, razão pela qual cumpre a ele desenvolver metas de inclusão social, podendo ser acionado em caso de omissão.
Uma vez que os direitos fundamentais são justiciáveis em face do disposto na Constituição de 1988, é preciso que o Judiciário Brasileiro seja aberto a tais proposições posto que se trata de ações atinentes à cidadania que também é um princípio basilar do Estado Democrático de Direito, não sendo aceitável o estabelecimento de normas administrativas que dificultem o acesso à Justiça.
Em razão disso, a intervenção do Judiciário quando acionado em face de tais questões é a mera realização em juízo de um direito do cidadão que se vê privado de prestação de competência do Estado, que se manteve omisso quanto as prestações positivas dos direitos fundamentais de inclusão.
Portanto, trata-se de uma tentativa de concretização de direitos que lhe são sonegados e nada mais, não havendo que se falar em ativismo judicial, mas na justicialização dos direitos fundamentais e de acordo com o princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Por isso medidas judiciais podem ser tomadas contra o Estado e seus órgãos, organismos não governamentais e familiares que não observem os direitos fundamentais de pessoas, com base no principio da solidariedade ou no dever explícito ou implícito de  órgãos atuarem em favor da inclusão social, erradicação da pobreza, preconceito e pelo desenvolvimento da vida humana em geral, conforme preconizado na Constituição e balizado pelo princípio da dignidade da pessoa humana.







REFERÊNCIAS
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LOPEZ, Steve. O Solista. Trad. Mauro Gama e Claudia Martinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.
QUINET, Antonio. A Descoberta do Inconsciente do Desejo ao Sintoma. 3ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais, Na Constituição Federal de 1988. 7ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Uma Teoria dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009.

VOESE, Ingo. Argumentação Jurídica. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2009.











[1] Juiz de Direito, Mestrando pela PUC-MINAS e professor do Departamento de Direito Privado da UNIMONTES – Universidade Estadual de Montes Claros.
[2] Professor Doutor da PUC-MINAS e orientador deste trabalho e do seu autor.
[3] LOPES, Steve. O Solista. Trad. GAMA, Mauro e MARTINELLI, Claudia. Editora Nova Fronteira.
[4] Nota do Autor: Sandra Bullock, atriz de inúmeras comédias românticas ganhou o oscar de melhor atriz pela interpretação de uma mulher conservadora e de classe social abastada, que apóia um jovem negro e sem teto a se tornar um astro do futebol americano.
[5] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer e Enio Paulo Giachini. 10ª Ed. Petrópolis: Vozes, 2008
[6] GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva. Trad. Marco Antonio Casanova. Petrópolis: Vozes, 2009.
[7] BOHM, David. Diálogo, comunicação e redes de convivência. Palas Atenas São Paulo, 2005.
[8] ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. P. 62
[9] ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais.
[10] ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios.

2 comentários:

  1. Esta aí a chave da caridade social e que ela seja então implantada na nossa sociedade civil, já que existe a lei magna que a ampara e a legitima. A inclusão social humana se estende à inclusão social dos animais, que se fazem espelhos um dos outros.

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