DIREITO,
CINEMA E LITERATURA: O SOLISTA, O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA, OS
DIREITOS FUNDAMENTAIS E OS EXCLUIDOS
Lailson Braga Baeta Neves[1]
Edimur Ferreira de Faria[2]
RESUMO
Tanto o livro
quanto a obra cinematográfica “O Solista” narram a história de Nathaniel Antony
Ayers e sua relação com o jornalista Steve Lopez, autor do livro. Nathaniel foi
aluno brilhante da famosa escola Jilliard, mas em face de uma série de surtos
psicóticos, abandonou o curso e acabou por se tornar um morador de rua após a
morte de sua mãe. Steve o conhece, certo dia, quando ia para a redação do “Los
Angeles Times”, enquanto ele tocava violino nas ruas. A partir daí inicia-se
uma amizade que conduz o leitor/espectador ao mundo dos portadores se
sofrimento mental e dos “moradores de rua”, e a luta para sua integração, mas
observando-se os seus direitos, dignidade, permitindo-lhes sempre, a
manifestação e expressão livre de sua vontade. Neste artigo, sob a apreciação
dessas obras, em face de sua mensagem universal, analisa-se as mais modernas e contemporâneas doutrinas no que diz respeito
aos direitos fundamentais e sua relação com os princípios basilares da
Constituição Brasileira de 1988 e do Estado Democrático de Direito.
Palavras chave: pessoa, dignidade humana, direitos,
inclusão, autonomia, intervenção.
1-Introdução.
O presente artigo tem por escopo, sob a ótica do
filme e o livro “o solista”, analisar a aplicação dos princípios fundamentais
estabelecidos na Constituição da República Federativa do Brasil, focando no
princípio da dignidade da pessoa humana, bem como nos direito fundamentais
elencados na mencionada Constituição.
A intenção é verificar se a obra em foco apresenta elementos
que propiciam refletir-se sobre tais questões, inclusive sobre a necessidade ou
não da intervenção estatal ou de organismos que busquem proporcionar a inclusão
social sem, contudo, violar a autonomia do cidadão.
Além disso, busca-se demonstrar que algumas normas
estabelecidas administrativamente podem se tornar obstáculos ao desenvolvimento
de ações, especialmente em juízo, quando se faz necessária a intervenção do
Estado-Juiz para conferir medidas judiciais que visão a inclusão social da
pessoa humana, conferindo-lhe os direitos e garantias inerentes ao cidadão e
assegurando-lhe a dignidade.
As ideias postas no filme serão confrontadas com a
visão doutrinária sobre o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos
fundamentais, conforme Alexy, Ávila, Gadamer, Habermas, Sarlet, dentre outros.
A princípio, serão analisadas as obras
cinematográfica e literária, considerando o conteúdo da história, sua ficha
técnica, para posteriormente relacioná-las, assim como seus protagonistas com a
disposição Constitucional.
Posteriormente serão feitas as considerações gerais
e finais.
2.
O livro
O livro é de autoria de Steve Lopes, jornalista que
tem uma coluna no “Los Angeles Times”.
Certo dia, quando fazia o caminho de volta para sua
casa o autor ouviu o som de um violino executando Beethoven[3].
O autor estava apressado para entregar a sua coluna
no jornal, mas mesmo assim, parou e viu um maltrapilho morador de rua
executando a peça em um violino que, segundo ele, “mais parecia tirado de um
latão de lixo”.
Diante disso, parou e puxou conversa com o músico de
rua: Era Nathaniel Ayers, ex-estudante da Juilliard, uma das mais importantes
escolas de música do mundo. Negro e de origem humilde, se destacou pelo seu
inegável talento, em face das pressões sofridas, acabou sucumbindo à
esquizofrenia e, diante de tantos surtos, terminou como morador de rua.
O instrumento de Nathaniel era o violoncelo (no
livro contrabaixo), entretanto, por causa da redução de sua condição de
excluído social só lhe restou aquele violino sovado (velho e com apenas duas
cordas).
Steve Lopez começa a escrever sobre Nathaniel, mas,
mais do que isso, trava uma amizade com o músico que renderá mudanças na vida
de ambos. Lopes passa a ter contato com um grupo de pessoas que são excluídas
da sociedade.
3.
O filme
O filme retrata a história trazida no livro de Steve
Lopes e é dirigido por Joe Wright que tem no seu currículo obras como “Orgulho
e Preconceito” e “Desejo e Reparação”.
Trata-se de cineasta inglês, acostumado a temas
sociais, o que lhe permite uma penetração no enredo, mantendo uma equidistância
regional com a imparcialidade necessária.
O personagem de Nathaniel é interpretado por Jamie
Foxx, ator consagrado e premiado pela sua atuação em “Ray”.
Steve Lopez é interpretado por Robert Downey Júnior,
ator também consagrado e premiado por sua atuação em “Chaplin”, e que viveu a
glória e o declínio em face do seu envolvimento com drogas.
Tanto a direção quanto o elenco nos parecem
acertados para viver uma história de exclusão social, glória e declínio.
É importante ressaltar que moradores de rua, em um
projeto de inclusão social, atuaram no filme na condição de figurantes.
Houve, durante as filmagens, uma aproximação com a
realidade e uma tentativa de participação ativa dos reais protagonistas (os
excluídos), na construção da obra.
É importante ressaltar que o filme informa de que
existem, atualmente, 90.000 moradores de rua na cidade de Los Angeles, quebrando
a falsa ideia de que os Estados Unidos, país mais ricos do mundo é, também, um
lugar em que a democracia e a justiça social não se realizam de forma plena.
O filme, assim como o livro, quebra outro paradigma
que é a vítima que precisa de socorro do herói imune a qualquer fraqueza.
Nas duas obras mencionadas, assim como em outro
filme, “O sonho Possível”, cuja protagonista é Sandra Bullock[4],
o que se vê é a quebra do modelo de personagem “caridoso”.
O que se percebe nas telas é a construção de uma
relação entre os protagonistas, por meio da qual aqueles personagens que numa
visão tradicionalista seriam os imbatíveis heróis, se mostram frágeis e acabam
crescendo em consciência política e social.
Uma vida às vezes fútil e vazia é enriquecida pelo
personagem central da história, pois esta lhe confere conteúdo e uma nova visão
da vida, retirando-lhes da passividade de meros observadores para ativista da
vida cidadã.
A relação entre os atores principais revela-se, em
síntese, equilibrada não só pelos vínculos afetivos, mas também pelos ganhos
reais para os envolvidos por meio da descoberta e construção constante de
valores e motivadores capazes de realizar a construção humana mediante a edificação
linguística, dialógica e promovente da fusão das realidades antes tão
distintas.
Cumpre salientar, também, que tanto o livro como o
filme, por tratarem da questão referente á alienação mental, desamparo do
Estado e, por consequência, dos moradores de rua, torna universal o tema,
apesar de se passar em Los
Angeles , Califórnia, Estados Unidos.
No Brasil, o tema torna-se relevante em face do
elevado número de pessoas excluídas socialmente, tanto na zona urbana como na rural.
3.
Os valores postos no filme e no livro
O livro trata da vida de Nathaniel Ayers e de sua
derrocada em face do acometimento de surtos frequentes em razão da
esquizofrenia diagnosticada.
Em virtude da doença a que fora acometido, o
protagonista teve afetada a sua dignidade expressa por um abandono total pelo
Estado e pela sociedade que não lhe socorrem quanto a questões básicas,
compreendendo habitação, assistência médica, jurídica, entre outras.
Por outro lado, se está a se exigir a intervenção do
Estado em favor do protagonista, por outro, impõe-se, pelas mesmas razões de
direito, que sua autonomia, sua individualidade e sua valoração sejam
respeitadas.
É esta gama de valores mencionados que, ás vezes,
entra em conflito e merecem ser analisados e dirimidos em face da situação
concreta que se apresenta.
4.
O Dispositivo Constitucional basilar
O artigo 1º da Constituição de 1988 estabelece de
forma clara a federação e o Estado Democrático de Direito, para, em seguida, instituir
os seus fundamentos, ou, melhor dizendo, os seus princípios fundamentais que
são: a soberania; a cidadania; a dignidade da pessoa humana; os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa e; o pluralismo político.
No parágrafo único estabelece-se o poder como
emanação do povo que o exerce através de seus representantes.
Vê-se que o
artigo 1º da Constituição não só estabelece o Brasil enquanto uma República Federativa,
como proclama o Estado Democrático de Direito como sendo a forma jurídica deste
País.
Os seus incisos, arrolam os princípios fundamentais,
basilares e norteadores do Estado Democrático de Direito Brasileiro.
É com base nesses princípios que se estabelecem os
poderes da União e, em seguida, os objetivos fundamentais do Brasil que são:
constituir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento
nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades
sociais e regionais e; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem,
raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
O Estado Democrático de Direito não se estabelece
sem os princípios basilares e estes, por sua vez, exigem, para a sua
efetividade, entre outras, a constituição de uma sociedade justa, livre e
solidária; o que se faz por meio do desenvolvimento nacional e da erradicação
da pobreza e da marginalização.
Naturalmente, isso não se faz, a não ser em uma
sociedade sem desigualdades sociais e regionais e sem qualquer tipo de discriminação,
como inserto no inciso IV do art. 2º.
Os direitos fundamentais positivados na Constituição,
em particular os dispostos no art. 5º (direitos civis), tem por escopo a
garantia de toda essa gama de princípios e objetivos constitucionais.
Opta-se por fazer esta abordagem em consonância com
o princípio da dignidade da pessoa humana por ser o mais emblemático de todos,
o que permite a facilitação da transposição do raciocínio aqui desenvolvido
para qualquer deles.
Nesse aspecto, a narrativa da vida de Nathaniel
Ayers é fundamental para a reflexão da necessidade de aplicação de tais diretivas
em face de um caso concreto, pela simples transposição e análise dos fatos.
5.
O Princípio da Dignidade da Pessoa Humana
A dignidade da pessoa humana é, talvez, o princípio
basilar de todos os demais, visto que o reconhecimento da dignidade humana
promove a valoração dos demais princípios, tais como cidadania, pluralismo,
soberania, entre outros.
Aludido princípio, nunca antes positivado em
constituições brasileiras, originou-se e fundamenta-se na doutrina cristã.
Entende-se que o ser humano, criado a semelhança de
Deus contém, em si, a inata dignidade inerente á sua condição única de similar
ao Criador.
O princípio em foco foi acolhido pelo direito, em
especial pelo jusnaturalismo e vem sendo á base do constitucionalismo contemporâneo,
no que diz respeito aos direitos fundamentais que, em grande parte, são
derivativos do princípio da dignidade da pessoa humana.
Tailhard de Chardin, na obra o “Fenômeno Humano”
destaca as características que fazem do homem um ser dotado de dignidade
intrínseca:
“ Na verdade, duvido
que haja, para o ser pensante, minuto mais decisivo do que aquele e que,
caindo-lhe a venda dos olhos, descobre que não é elemento perdido nas
oscilações cósmicas, mas que uma universal vontade de viver nele converge e se
hominiza. O Homem, não centro estático do Mundo – como ele se julgou durante
muito tempo, mas eixo e flecha da evolução – o que é muito mais belo.” (CHARDIN, 2006, p. 28)
Embora considerada um atributo inato á natureza
humana, alguns autores ressaltam os contornos sociais ou de certas sociedades
no que diz respeito á aspectos da dignidade da pessoa humana.
Vale dizer, certa forma de tratamento a inserção ou
o posicionamento da pessoa em determinado grupo social pode provocar uma
afetação de sua dignidade, o que não ocorreria em outras sociedades em face da
mesma situação.
Apenas a título de exemplo, e para caracterizar o
que já foi dito, apoiando-se ainda nas obras referidas, pode ser que em uma
comunidade nômade a questão da inexistência de moradia ou habitação não tenha
influência na qualidade de vida da pessoa, não se podendo dizer o mesmo quanto
a uma comunidade sedentária em que a propriedade e a habitação são referências
não só de inserção como de posicionamento social.
Assim, pois, apesar da alegação quanto à natural
qualidade deste princípio, deve-se destacar a importância dos valores de
determinado grupo para se definir quanto á observância e verificação da
efetivação do princípio em face da realidade em concreto.
Existe, pois, forte conteúdo cultural e histórico na
construção desse princípio em exame.
Sobre o tema assevera Sarlet:
“A qualidade
intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do
mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando,
neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a
pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como
venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável,
além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos
destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres
humanos, mediante o devido respeito aos demais seres que integram a rede da
vida.” (SARLET, 2009, p. 67)
O conceito alinhavado por Sarlet não discrepa de
outros, em termos de concepção, além disso é completo e rico em conteúdo, razão
pela qual se dispensa a transcrição de outros conceitos, por certo, aceitáveis
em face de sua precisão e conteúdo.
6.
O Princípio da Dignidade Humana e os excluídos
Diante do que já foi exposto, está claro que em face
da nossa sociedade e os seus valores, a situação dos “sem teto”, ou “moradores
de rua” está em desacordo com o princípio da dignidade da pessoa humana.
Não se duvida de que a pessoa sem habitação,
assistência médica ou psicológica, assistência educacional e jurídica, não tem
o tratamento que faz jus em razão da sua condição de ser humano.
A construção histórica deste princípio, na sociedade
brasileira, prescreve que as pessoas com menores condições devam ter a
possibilidade de se verem incluídas socialmente.
O morador de rua pessoa sem qualquer recurso financeiro,
cultural ou social cabe ao Estado, a família e a sociedade, tem direito à ajuda
do Estado para a sua inserção na sociedade.
Entretanto, é preciso que a inserção se faça de
maneira não invasiva, considerando e respeitando a natureza humana e a
individualidade daquele a quem se pretende assistir. É este aspecto que tanto o
livro quanto o filme “O Solista” deixa claro.
Lopez, ao conhecer Ayers, passa a se interessar por
ele, bem como pela situação dos “sem teto”, procurando trabalhar junto a
Nathaniel tendo como foco a sua própria sensibilidade, o amor pela música.
É verdade que, no princípio, Lopez pretendia que se
impusesse a Ayers métodos de tratamento e recuperação sem levar em conta a sua
liberdade e sua vontade, o que seria também, uma violação ao princípio da
dignidade humana, a despeito das intenções do autor serem as melhores
possíveis.
Lopez vale-se do discurso e da linguagem, na mesma
proporção em que Bohnn o faz em sua obra “Diálogo”. Convém analisar a
importância da linguagem e do diálogo como meio de construção de uma solução
adequada para o convencimento do excluído.
Para que não haja dúvidas quanto ao que se está discutindo
aqui, não se pretende que a solução de questões desse jaez seja resolvida sem
políticas efetivas do Estado em prol das pessoas excluídas.
Todavia, o convencimento e a inserção psicológica, devem
ser realizados pela interação com a pessoa ou pessoas que se pretende incluir.
Tais pessoas, aviltadas e espezinhadas em sua
dignidade, encontram-se em um estado, que necessita de medida interativa e
dialógica, para se sentirem motivadas a participar de programas governamentais
e não governamentais.
7.
A Linguagem Para a Psicanálise
7.1
A Teoria da Linguagem para Lacan
A teoria da linguagem
para a psicanálise tem muito sentido se compreendermos Lacan. Quinet na sua obra “A descoberta do
Inconsciente, do Desejo ao Sintoma”, ao comentar a visão Lacaniana, afirma que
a mente humana é estruturada pela linguagem. O homem para ele é linguagem, um
ser cultural. É a linguagem que o humaniza e afasta o homem definitivamente da
natureza, definindo-o e o estruturando, razão pela qual é lógico que todo o
progresso científico e filosófico passe pela linguagem, por um discurso
racional e estruturado.
Para Lacan, no seu inconsciente, é na linguagem que
habitamos e por ela somos habitados. Afirma ainda, que a linguagem é
individual, mas a fala ou o discurso implica o reconhecimento do outro.
É preciso, contudo, diferenciar significante de
significado, o primeiro é a palavra, o símbolo e o segundo, o conteúdo a ele
aplicado. Tal compreensão é fundamental para compreender as diferenças de
entendimento em face da mesma linguagem ou sinal simbólico.
Convém salientar que, para Lacan e Quinet, a
linguagem não se limita ao exercício oral, mas em toda utilização gestual,
simbólica ou representativa que tenha a função de comunicação, incluindo as
expressões gestuais e faciais.
A linguagem, por sua vez, se origina no Édipo, na
primeira palavra que é o reconhecimento do nome do pai, segundo Freud na obra
“Totem e Tabu”. Eis porque, qualquer teoria séria do direito deve passar pela
linguagem e pela prática discursiva.
7.2
A Visão de Freud
Para Freud (1999), tanto a lei quanto a neurose tem
origem no pai primitivo. Os filhos matam o pai dominador, mas em virtude da
culpa e da ausência da Lei constroem o totem como culto ao pai. O totem é
referência à proteção (pai, lei) e o tabu ao que é proibido ou digno de
proteção.
A primeira palavra, segundo a doutrina freudiana,
foi o nome do pai, consistindo a linguagem em uma busca da construção do pai
primitivo ou a Lei.
A linguagem, portanto, se origina no “Édipo” (nome
do pai), que é o primeiro significante. Daí, a origem íntima entre linguagem,
psicanálise e direito; questão esta, importante para este trabalho.
Daí a conclusão de que o homem se constrói pela
linguagem e, portanto, o direito é fruto de uma construção linguística.
7.3.
Habermas
Segundo Habermas, a norma deve ser construída pelo
discurso dos envolvidos. Assim, é preciso uma sociedade atuante para a
construção de regras orientadoras de ações em favor dos excluídos.
De outra sorte, faz-se necessário que aos excluídos,
sejam permitidas voz e vez para participarem de seus destinos por meio do
diálogo, quer seja no nível individual ou coletivo.
O personagem Lopez representa tanto o Estado quanto à
sociedade que se movimenta entre o desinteresse ao intervencionismo absoluto
para se fixar, finalmente, no diálogo.
7.4.
Gadamer
Hans-Georg
Gadamer, filósofo alemão, é o autor de várias obras, como: “Verdade e Método,
Traços Fundamentais de uma Hermenêutica Filosófica”[5]
e a não menos importante “Hermenêutica em Retrospectiva”[6].
Esse
conceituado filósofo europeu realizou revisão do pensamento iluminista, afastando-se
da postura absolutamente racional, um cientificismo exacerbado para
aproximar-se da tradição, afirmando que está irremediavelmente incrustados na
cultura e na linguagem, o que torna descabido sustentar-se em certeza baseada
em método inteiramente racional.
Gadamer
entende que deve haver uma fusão de horizontes, considerando-se a tradição a
arte e a cultura dos envolvidos, e é o que de fato se dá entre Lopez e Ayers.
É
preciso postura isonômica entre os interessados ou participantes do diálogo
construtivo.
7.5 O Diálogo Quântico
Para
Corroborar o que foi dito até agora no que diz respeito à linguagem, pode-se tomar
como referência David Bohm[7],
físico quântico que tinha no diálogo um meio adequado para ampliação e
revelação da consciência.
Bohm
acredita que com a formação de um grupo dialógico de pessoas diferentes
(culturalmente), no curso do diálogo estas diferenças se tornariam tênues e que
as diferenças seriam superadas em face de um entendimento da natureza da
realidade em geral e da consciência em particular, como uma totalidade
coerente, independentemente do tópico ou tema levatado.
Bohm
define diálogo, diversamente de discussão, como o emprego da palavra por mais
de um, valendo-se da etimologia da palavra que tem origem no idioma grego
(logos = palavra; dio = dois).
Assim,
pela própria física quântica, o diálogo é visto como uma forma de conscientização
e de solução de problemas, bem como superação de diferenças e de problemas
comuns, em busca de um senso de realidade conjunto.
O
diálogo exige uma postura igualitária, não competitiva e que respeite as
posições do outro, mantendo-se, ainda, aberto à possibilidade de revisão das
próprias posições.
Esta
é uma forma viável de inclusão conforme demonstrado no filme, sem a necessidade
de descaracterização da personalidade de quem quer que seja, tendo-se em vista
a visão pluralista constitucional.
8. O Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana e os Direitos Fundamentais
Os
direitos fundamentais são derivativos dos princípios basilares e, em especial,
o da dignidade da pessoa humana.
Como
se disse, a prática discursiva não tem o condão de resolver a questão da
inclusão do morador de rua ou de qualquer outro excluído, sem a participação
voluntária e consciente deste.
Entretanto,
uma vez superada essa fase, é preciso que medidas efetivas sejam adotadas.
O
direito à habitação, à saúde, à educação, à vida digna, à liberdade, entre
outros, são direitos fundamentais que devem ser usufruídos por todos.
Abrigos
e moradias comunitárias devem estar disponíveis aos que necessitam, assim,
também, como assistência médica, terapêutica e medicamentosa.
Todavia,
não ocorrendo á ação estatal, diante do que dispõe a jurisprudência, impõe-se a
intervenção judicial para a sua realização.
A
efetiva inclusão social passa pela necessária regularização de registros de
nascimento, casamento, documentos em geral, até mesmo a inserção em programas
de reabilitação, tratamento e moradia.
Trata-se
no caso, da defesa de direitos fundamentais de primeira, segunda e terceira
geração, tanto de status passivo quanto ativo do Estado e que podem ser
judicializados.
Alexy[8],
na obra “Constitucionalismo Discursivo”, refere-se expressamente à Constituição
brasileira, quando diz que os direitos fundamentais nela positivados são
imediatamente justiciáveis.
Afirma
que esses direitos são democráticos por que tem por escopo o desenvolvimento
humano e a sua realização como meio, para tanto, é uma finalidade do Estado,
razão pela qual o acionamento judicial e a intervenção do Judiciário não podem
ser considerados mero ativismo judicial, mas a real possibilidade conferida ao
cidadão de exigir em juízo a prestação a que tem direito.
Logo
com base nisso, o ingresso em juízo pretendendo a realização desses direitos é plenamente possível.
O estabelecimento dos princípios, espécie do gênero
norma impõe a sua realização, no entendimento de Alexy[9]
e Ávila[10],
no máximo possível.
Ávila estabelece a aplicação da máxima da
proporcionalidade para dirimir questões conflituosas, nos termos da ponderação
apontada por Alexy.
Estranhamente, os Tribunais, em edição de resoluções
e portarias (atos administrativos), exigem que a pessoa, para propor ação
judicial deve informar dados tais como número do cadastro de pessoas físicas,
nome da mãe, entre outros.
Ora, diante de alguém, que pode desconhecer até o
seu próprio nome, tendo em vista que se encontra desprovido do mínimo
existencial como registro público, documentos, nome dos pais, ou mesmo
inscrição no famoso CPF.
É inadmissível que medidas administrativas venham
sobrepor-se as normas processuais infraconstitucionais e, até, a princípios
basilares como cidadania e dignidade da pessoa humana. Aludidas exigências são,
portanto, inconstitucionais e devem ser repelidas.
9.
A Pretensão de Correção na Decisão Judicial
A decisão judicial deve conter uma pretensão de
correção e, para tanto, o processo de sua construção deve ser interativo e
discursivo, nos termos já postos.
Inadmite-se que a construção da decisão deixe de considerar
a participação dos interessados, quer seja na forma discursiva ou utilizando-se
dos demais recursos inerentes ao processo.
Deve-se facultar as partes a exposição racional de
seus argumentos, a fim de demonstrar a norma a ser aplicada ao caso concreto.
O magistrado deve perceber que a construção
hermenêutica se faz interativamente e que é uma construção conjunta.
Lopez (aqui representando o Estado-Juiz) percebe e
estabelece uma relação interativa com Nathaniel, buscando a solução correta e
não a que lhe parece, à primeira vista, a mais viável.
A sua
aproximação não lhe retira a qualidade de observador imparcial. A sua
compreensão daquele universo não o transforma em parte ou em interessado no
desfecho dos rumos a serem tomados.
Curiosamente, Lopez nem sempre age assim no decorrer
da narrativa, demonstrando que ele também passa por um processo de
amadurecimento, passando desde o juiz júpiter (interventor) e rapidamente pelo
Hércules (heróico conhecedor da lei) até chegar ao juiz Hermes (interativo com
os interessados) permitindo uma construção comum e participativa.
Lopez deixa de tentar tomar o destino de Nathaniel
nas mãos e passa a interagir com este, permitindo-lhe a existência digna que
tem direito, dentro de seus próprios parâmetros.
É preciso garantir a dignidade da pessoa humana no espírito
democrático, mas respeitando a própria compreensão daquele a quem se estende a
proteção, tudo nos termos do pluralismo cultural e político predicado na Constituição.
Convém ressaltar, que o princípio da dignidade da
pessoa, é um referencial hermenêutico determinante para o estabelecimento da
decisão correta. Evidentemente, entre duas posições antagônicas postas em
juízo, a valoração das argumentações deve ser realizada á luz do princípio da
dignidade da pessoa humana.
Em face dos argumentos defendidos pelas partes, a
decisão mais correta será a que melhor preserve este princípio ou a que menos a
ofende.
Não há como olvidar que medidas judiciais podem ser
tomadas não só contra o Estado, mas contra familiares que se omitem ou deixam a
pessoa ao léu, tendo em vista os direitos fundamentais e o princípio da
solidariedade, acolhido também, pela nossa Constituição.
É comum, todavia, que membros da família considerem
pessoas como Nathaniel (não foi o caso dele), como mero incômodo e os abandonem
à própria sorte.
É mais grave quando organismos não governamentais
que se proponham a agir em favor dos excluídos, se arredem de seus fins,
negando apoio a esses e, podem, por
isso, ser acionados judicialmente com base nos mesmos princípios, já que
existem com o único fim de promover a inclusão social.
Para isso, é preciso que as partes, magistrados,
advogados, membros do ministério público, administradores públicos, tenham em
mente que os direitos fundamentais têm por escopo a preservação e o
desenvolvimento do ser humano, assim como o princípio da dignidade da pessoa
humana é um balizador de qualquer projeto normativo-jurídico, razão pela qual
qualquer decisão que se afaste de sua consideração ainda que como referencial
hermenêutico, sucumbirá em face de uma falsa correção, ainda que formalmente
correta.
Tanto as políticas públicas, bem como as ações de
organismos estatais ou não, ou de indivíduos, nesta seara, devem ter como base
a preservação e aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana.
Essa conduta norteou a ação das personagens,
tornando viável a inserção de Nathaniel, na medida do possível e com profundo
respeito às suas posições, crenças e valores.
Conclusão.
Tanto o livro quanto o filme “O Solista”, trazem em
si uma narrativa e uma mensagem sobre a vida dos excluídos sociais (moradores
de rua) que pode ser universalizada e analisada sob a ótica do Direito
Brasileiro.
As personagens Nathaniel e Lopez personificam a
evolução das relações entre um excluído e o representante da sociedade e do
Estado, elevando a relação para um nível não invasivo mas participativo e de
inserção social.
Por meio dessa narrativa, pode-se analisar a
aplicação dos princípios basilares constitucionais, em especial o da dignidade
da pessoa humana e seus reflexos sobre os direitos fundamentais.
É possível apontar à necessidade de políticas
públicas destinadas a inclusão social, observando-se a efetivação dos direitos
fundamentais, em especial, saúde, liberdade, autodeterminação, habitação ou
moradia, além de outras.
No filme pode se notar delineada formas de inclusão
não intervencionistas que respeita a liberdade e a pluralidade política e
cultural, estabelecendo o diálogo, a linguagem ou o discurso como base de
estruturação do ser humano, permitindo-lhe o uso daqueles recursos a fim de se
ver incluído e participante da sociedade.
A própria realização do filme foi uma ação de
inclusão social, já que verdadeiros moradores de rua atuaram na película
enquanto figurantes e foram remunerados por isso.
As mais modernas doutrinas nacionais ou alienígenas
encontram correspondência na história de Nathaniel que, por sinal, ainda vive
em Los Angeles, demonstrando a sua efetiva aplicabilidade em face de casos
concretos.
Os direitos fundamentais têm como finalidade o
desenvolvimento humano, o que é o objetivo do Estado, razão pela qual cumpre a
ele desenvolver metas de inclusão social, podendo ser acionado em caso de
omissão.
Uma vez que os direitos fundamentais são
justiciáveis em face do disposto na Constituição de 1988, é preciso que o
Judiciário Brasileiro seja aberto a tais proposições posto que se trata de
ações atinentes à cidadania que também é um princípio basilar do Estado
Democrático de Direito, não sendo aceitável o estabelecimento de normas
administrativas que dificultem o acesso à Justiça.
Em razão disso, a intervenção do Judiciário quando
acionado em face de tais questões é a mera realização em juízo de um direito do
cidadão que se vê privado de prestação de competência do Estado, que se manteve
omisso quanto as prestações positivas dos direitos fundamentais de inclusão.
Portanto, trata-se de uma tentativa de concretização
de direitos que lhe são sonegados e nada mais, não havendo que se falar em
ativismo judicial, mas na justicialização dos direitos fundamentais e de acordo
com o princípio da inafastabilidade da jurisdição.
Por isso medidas judiciais podem ser tomadas contra
o Estado e seus órgãos, organismos não governamentais e familiares que não
observem os direitos fundamentais de pessoas, com base no principio da
solidariedade ou no dever explícito ou implícito de órgãos atuarem em favor da inclusão social,
erradicação da pobreza, preconceito e pelo desenvolvimento da vida humana em
geral, conforme preconizado na Constituição e balizado pelo princípio da
dignidade da pessoa humana.
REFERÊNCIAS
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VOESE, Ingo. Argumentação Jurídica. 3ª ed. Curitiba:
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[1]
Juiz de Direito, Mestrando pela
PUC-MINAS e professor do Departamento de Direito Privado da UNIMONTES – Universidade
Estadual de Montes Claros.
[2]
Professor Doutor da PUC-MINAS e orientador deste trabalho e do seu autor.
[3]
LOPES, Steve. O Solista. Trad. GAMA, Mauro e MARTINELLI, Claudia. Editora Nova
Fronteira.
[4] Nota do Autor: Sandra Bullock,
atriz de inúmeras comédias românticas ganhou o oscar de melhor atriz pela
interpretação de uma mulher conservadora e de classe social abastada, que apóia
um jovem negro e sem teto a se tornar um astro do futebol americano.
[5]
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método I, Traços Fundamentais de uma
Hermenêutica Filosófica. Trad. Flávio Paulo Meurer e Enio Paulo Giachini. 10ª
Ed. Petrópolis: Vozes, 2008
[6]
GADAMER, Hans-Georg. Hermenêutica em Retrospectiva. Trad. Marco Antonio
Casanova. Petrópolis: Vozes, 2009.
[7]
BOHM, David. Diálogo, comunicação e redes de convivência. Palas Atenas São
Paulo, 2005.
[8]
ALEXY, Robert. Constitucionalismo Discursivo. P. 62
[9]
ALEXY, Robert. Teoria dos Direitos Fundamentais.
[10]
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios.
Esta aí a chave da caridade social e que ela seja então implantada na nossa sociedade civil, já que existe a lei magna que a ampara e a legitima. A inclusão social humana se estende à inclusão social dos animais, que se fazem espelhos um dos outros.
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